Capítulo VI — A linha que me trouxe até aqui
Olho para trás e vejo uma linha invisível, tênue, que costura gerações de mulheres da minha família. Uma linha feita de silêncios, de cortes, de culpas, de sobrevivência. Uma linha que começou muito antes de mim — talvez quando a minha avó foi posta para fora de casa com apenas treze anos, ou quando a minha mãe teve de parir sozinha, ou ainda quando me olhou pela primeira vez e não soube se era capaz de me amar.
Essa linha não é bonita. Nem reta. É uma linha torta, áspera, muitas vezes enredada. Mas é ela que me trouxe até aqui.
Durante muito tempo, tentei desfazê-la. Romper com tudo. Apagar o passado para poder existir. Mas descobri, aos poucos, que é impossível seguir sem reconhecer de onde se vem. Não é o silêncio que me liberta. É o olhar profundo, honesto e até desconfortável para tudo o que me formou.
Foi nesse olhar que nasceu a arte.
A arte não veio para me salvar — não acredito em salvação — mas veio para me permitir ver. Ver as minhas dores, ver a tristeza da minha mãe com outros olhos, ver os corpos femininos que me antecederam como testemunhas e não apenas vítimas. E ver-me a mim mesma como criadora de outra possibilidade.
Comecei por fotografar. Depois escrevi. Depois costurei. Depois construí imagens, objetos, gestos. Cada um deles era uma pequena tentativa de dar nome ao que sempre foi indizível. E quanto mais nomeava, mais entendia que eu podia existir fora da repetição.
Hoje, não escrevo para acusar. Nem para culpar. Escrevo para compreender. Para oferecer um fio novo a essa linha antiga. Um fio que possa ligar o passado à possibilidade de um futuro mais leve, mais consciente, mais cuidado.
O que me move agora é a mulher. Não só a mulher que sou, mas todas as mulheres que habitam em mim — a menina ferida, a mãe hesitante, a artista inquieta, a filha que ainda procura colo. O que me move é esse gesto de escuta entre mulheres. Esse espaço de partilha onde uma pode dizer à outra: “eu também”.
No fim, não quero um monumento. Quero uma conversa. Quero uma fotografia que respire. Um texto que abrace. Um corpo que se mova sem medo. Quero que as minhas obras sejam esse lugar onde outras mulheres também se encontrem — e se reconheçam, e se libertem, um pouco.
Porque a linha que me trouxe até aqui... não termina em mim. Ela continua. E eu escolho continuar com ela, mas com as mãos no fio, guiando-o para outra forma. Com menos dor. Com mais presença. Com mais verdade.