Capítulo II — O corte



Nasci antes da hora. Prematura, apressada, como se o mundo já me chamasse com urgência. A minha mãe, sozinha num quarto de hospital particular, com o corpo frágil e a alma esgotada. Não havia mãos a segurar as dela. Nenhum rosto conhecido na sala de parto. Apenas a presença silenciosa da dor, a que já lhe era familiar.

A cesariana foi inevitável. Uma gravidez de risco, disseram. Talvez o cordão ao redor do meu pescoço, talvez o coração da minha mãe cansado demais para o esforço de parir. Fui arrancada ao mundo por um corte preciso, horizontal, rente ao ventre. Um corte que, anos depois, me descreveriam como “mais estético”. Porque naquele hospital, pago pela família do meu pai, ainda havia escolha sobre como abrir uma mulher.

A minha tia, Maria, estava por perto, mas não pôde entrar. Era menor de idade. Esperou num quarto de visitas, ansiosa. Foi ela quem me pegou no colo pela primeira vez — não sei se com medo, ou com ternura. Talvez com ambos. Ela, que também passaria por uma cesariana anos depois, mas num hospital público, onde o corte foi outro: vertical, do umbigo ao púbis. Uma cicatriz mais brutal, mais visível, mais vergonhosa para ela, segundo contava. Porque mesmo as feridas do nascimento seguem uma hierarquia cruel.

O corpo da minha mãe guardou o corte por dentro. Por fora, uma linha fina, quase invisível, abaixo do ventre. Mas por dentro… por dentro, algo ficou aberto. Não se fechou com pontos. Não cicatrizou com o tempo. O nascimento de um filho pode ser, para algumas mulheres, o início de uma alegria infinita. Para outras, é o ponto onde a vida se parte — e nunca mais se recompõe.

Eu fui o ponto de ruptura da minha mãe.

Durante anos, ouvi — nos gestos, nas palavras e nos silêncios — que eu era a razão do que ela não viveu. Que, se não fosse por mim, talvez ela tivesse estudado, viajado, sido feliz. Carreguei essa culpa como quem carrega o próprio nome. Como se nascer tivesse sido uma escolha minha. Como se viver fosse uma dívida.

Mas hoje, adulta, mulher, mãe, artista, sei que o corte não foi só dela. Foi também meu. Porque mesmo sem saber, mesmo sem escolher, herdei aquela linha aberta. E é por isso que escrevo. Que fotografo. Que procuro imagens no escuro. Tento nomear o que nunca foi dito. Iluminar o que foi esquecido de propósito. O corte que me trouxe ao mundo é também o que me divide. Entre a filha e a mulher. Entre o trauma e a criação. Entre o silêncio e a palavra.

Há um ponto, entre o antes e o depois, que é só meu. É ali que quero habitar. É dali que nasce a minha obra.