Capítulo IV — A herança e o espelho
Durante muito tempo, a minha mãe foi para mim uma figura opaca — não exatamente ausente, mas enevoada. Estava sempre lá, mas como que coberta por um véu. Tinha o corpo cansado, os olhos ausentes, a voz tantas vezes embargada por um peso invisível. Não era difícil perceber que ela carregava mais do que podia. O problema é que, quando o fardo transborda, quem está por perto acaba por se afogar também.
Cresci com a sensação de que eu não era apenas filha. Eu era a lembrança viva do que ela não viveu. A prova contínua de que a juventude dela havia acabado antes do tempo. De que os sonhos ficaram suspensos entre uma barriga prematura e um casamento sem amor. E essa culpa — por ser, por existir — começou a enraizar-se em mim de forma silenciosa. Como um espinho sob a pele, pequeno demais para se ver, mas profundo demais para ignorar.
A minha mãe era uma mulher marcada. Marcada não só pelos abusos e pela negligência do passado, mas pela ausência total de amparo. Nem a mãe dela soube como cuidar. Nem a sociedade lhe ofereceu outra narrativa senão a da sobrevivência. E sobreviver, quando se é mulher pobre, jovem, triste, é um ato exaustivo. O afeto, quando vinha, era carregado de dor. E eu, ainda pequena, aprendi a interpretá-lo: o silêncio dela era amor. A raiva, exaustão. A frieza, escudo.
Hoje vejo: a minha mãe não sabia amar leve. Só sabia amar com o peso que recebeu.
E no entanto, quanto mais me afastava dessa figura melancólica, mais percebia que me tornava espelho dela. Repetia gestos, sofria silêncios, esperava de outros aquilo que nunca recebi. Até o dia em que percebi que o espelho podia ser virado. Que olhar para ela — para mim através dela — não precisava ser um lamento, mas um caminho de volta.
É por isso que crio. Porque a arte me permite quebrar o ciclo, ou pelo menos questioná-lo. Nas imagens que construo, há sempre ecos da infância, da solidão, do corpo materno ausente. Mas também há uma tentativa de reinvenção. De dizer: isto foi assim, mas pode ser diferente.
A herança que recebi não é feita apenas de traumas. É também feita de resistência. A minha mãe, mesmo ferida, carregou-me. Deu-me o mundo da forma que conseguiu. Talvez tenha sido pouco, talvez tenha sido torto — mas foi. E hoje, a partir desse pouco, tento construir outro universo. Um onde a mulher já não é apenas corpo explorado, ventre silenciado, dor invisível. Um onde possamos dar-nos colos umas às outras. Um onde o espelho já não repete, mas transforma.
Se a minha mãe tivesse tido o que dou agora à minha filha — escuta, espaço, ternura — talvez tudo tivesse sido diferente. Mas se hoje eu sei o que dar, é porque antes soube o que faltou. E isso, também, é uma forma de amor.