Capítulo I — Antes de mim

 

 

A minha história começa antes do meu primeiro choro, antes do corte na pele da minha mãe, antes mesmo da ideia de mim. Começa no silêncio enraizado das mulheres da minha família, atravessadas por violências que não escolheram, mas que moldaram cada gesto, cada ausência, cada tentativa de amor.

A minha avó materna foi expulsa de casa aos treze anos. Filha de uma família portuguesa profundamente religiosa, bastou-lhe engravidar para deixar de ser filha. Ninguém quis saber que a gravidez foi fruto de uma violação. O homem, um caminhoneiro já casado, teria colocado algo na bebida dela. Nunca foi punido. Ela, sim, foi punida — com o exílio, a vergonha, o abandono. Seguiu até Taubaté à procura do agressor, e ali começou a sua vida — ou o que restava dela.

Teve sete filhos. Criou-os na lavoura, com as mãos rachadas de frio e fome. Os olhos baixos, a cabeça erguida só para seguir. A minha mãe, Isabel, cresceu nesse cenário de terra e escassez, ao lado dos irmãos, num quase-nada que se parecia com uma infância. A casa era ao lado do antigo sítio de Monteiro Lobato, que já não vivia, mas onde, segundo minha mãe contava, às sextas-feiras aconteciam rituais de magia, sacrifícios, oferendas deixadas no escuro. No sábado, as crianças iam até lá, famintas, e comiam dos restos do que os deuses não quiseram.

Não havia proteção. Nem pão, nem escola, nem colo. E onde não há colo, sobra o medo. E o medo, quando dura tempo demais, transforma-se em hábito. A minha mãe foi abusada dentro de casa — pelo próprio pai, pelo irmão mais velho. A minha avó não intervinha. Talvez porque também nunca tenha sido salva. Talvez porque a dor que não é curada vira cegueira.

Mesmo entre tanto escombro, a minha mãe encontrou na irmã Maria um tipo de alívio. Eram três irmãs chamadas Maria, nascidas em três anos seguidos, em três dias seguidos de agosto: sete, oito e nove. Com a mais nova, minha mãe tinha uma ligação profunda. Foi ela quem acompanhou, do lado de fora, o meu nascimento.

A minha mãe engravidou jovem. Não fui planeada. Ela conheceu o meu pai numa discoteca, em plena década de 70, em 1979. Foi uma relação breve, atravessada pela urgência e pela pouca escolha. A família do meu pai — evangélica, fervorosa, moralista — não permitia o aborto. A solução foi o casamento. Um casamento que não veio do amor, mas da imposição. E foi aí que começou outra história. A do silêncio, da culpa e da violência emocional.

O meu pai, acredito, não estava presente no parto por causa do trabalho. Depois apareceu. Mas naquele momento crucial, não havia ninguém com a minha mãe. Ela estava só. Fisicamente só. E emocionalmente ferida. A cesariana, feita num hospital particular, foi providenciada pela família do meu pai, que tinha melhores condições de vida. A minha mãe teve sorte no corte, dizem. Foi horizontal, discreto, como se as cicatrizes da carne fossem menos dolorosas do que as que não se veem.

Mas há dores que não cicatrizam. A minha mãe carregou muitas delas, e algumas pôs sobre mim. Cresci ouvindo que eu fui o motivo pelo qual a vida dela não foi para a frente. Eu era o lembrete da vida que ela não teve. E foi assim que comecei a existir — não apenas no corpo, mas na narrativa dela, no ressentimento, no peso de ser filha onde não havia espaço para o amor incondicional.

Hoje, ao olhar para trás, percebo que sou herdeira de uma linha feminina de sobreviventes. Mulheres que não tiveram tempo de se curar, mas que me deram o direito de tentar. É através da arte que reconstruo essa história. Não para reescrevê-la como quem apaga, mas para compreendê-la, costurando o que foi rasgado.

E é no gesto de contar que busco o ponto de viragem: quando o silêncio vira fala, quando a solidão vira partilha, quando as mulheres, enfim, se dão colo umas às outras.