Capítulo III — A ausência presente


O meu pai não estava no parto. Não por rejeição — ao menos, não da forma óbvia — mas por causa do trabalho, disseram. Era um homem ocupado, inserido numa família evangélica de princípios rígidos e aparência impecável. A gravidez da minha mãe, fora do casamento, foi um escândalo abafado por obrigações. A criança, eu, não podia ser interrompida. Era contra os princípios da fé.

E assim, por imposição divina ou social, casaram-se.

Não sei se houve amor. Talvez um início confuso de desejo, uma discoteca, uma noite, um engano comum entre dois jovens nos anos 70. O que sei é que a presença dele, mesmo quando chegou, era ausente. Um corpo ali, mas sem afeto. Um nome, mas sem história comigo.

Foi a família dele quem assegurou o hospital particular, quem evitou o escândalo, quem cuidou do protocolo. E, de certa forma, foi esse gesto que definiu toda a estrutura: o cuidado material em contraste com o abandono emocional. Estava tudo ali — o berço, os lençóis limpos, a foto emoldurada. Faltava o calor, o olhar, o toque sem obrigação.

Na casa, o silêncio gritava. A minha mãe, atravessada por culpas que não eram suas, descontava em mim a vida que não teve. O amor que não recebeu. E o meu pai — mesmo presente, mesmo dentro da mesma casa — orbitava distante. Como se o papel de pai lhe tivesse sido atribuído, mas não desejado. Nunca houve violência explícita da parte dele. Mas há dores que não gritam, apenas se acumulam, como poeira nos cantos que ninguém limpa.

Cresci assim: com um pai presente-ausente, uma mãe triste e um lugar que nunca era meu por inteiro. O lar era feito de retalhos: fé, obrigação, ressentimento e silêncios. Não me lembro de beijos espontâneos, nem de mãos dadas na rua. As fotografias da infância mostram cenas ensaiadas, onde todos parecem sorrir por educação. Eu, desde cedo, aprendi a não esperar. A não perguntar. A apenas observar.

Mas mesmo a ausência, quando constante, se transforma numa presença firme. Era como uma parede invisível que dividia a casa. Ele estava. E não estava. E essa contradição moldou a forma como eu viria a ver o mundo: com desconfiança, com perguntas, com a constante sensação de que algo estava sempre por acontecer — e nunca acontecia.

Hoje, ao olhar para trás, compreendo melhor. O meu pai era também um homem moldado por um sistema. Preso numa fé que ensina mais sobre culpa do que sobre empatia. Numa masculinidade que proíbe fragilidade. Talvez ele nunca tenha aprendido a amar. Talvez ele próprio tenha crescido sem ser amado.

A ausência dele ensinou-me a observar. E a observação tornou-se o meu ofício. É no detalhe do que falta que reconheço a essência do que existe. E é por isso que fotografo — para fixar o que escapa. Para tornar visível o que passou despercebido.

A ausência tem forma. Tem cheiro. Tem eco. E tem cor. E, na minha obra, ela aparece inteira — como um fantasma que finalmente é visto.