Capítulo V — O corpo como território


O corpo, para mim, nunca foi apenas pele e osso. Desde cedo, percebi que ele carregava marcas que ninguém via. Cicatrizes herdadas, dores caladas, ausências antigas. O corpo da minha mãe foi o meu primeiro território — um lugar onde eu fui gerada e, ao mesmo tempo, indesejada. Um corpo que me acolheu por obrigação, e que me expulsou ao nascer sem a celebração que tantas crianças recebem.

Mas não foi apenas dela o corpo que me moldou.

O corpo da minha avó, violentado aos treze anos. O da minha tia, cortado sem delicadeza. O das mulheres à minha volta, tantas vezes ignorado, julgado, utilizado. Cresci a olhar esses corpos com um misto de medo e curiosidade. Onde é que se esconde a alma quando o corpo é silenciado? Como é que se grita quando a dor não encontra linguagem?

Durante muito tempo, tentei desligar-me do meu próprio corpo. Vivia da cabeça para cima. Pensava demais, sentia demais, mas recusava olhar para o espelho por inteiro. Como se ele denunciasse algo que eu não queria saber. Como se ali estivessem impressos todos os pesos que não escolhi.

Mas o corpo tem memória. Mesmo quando a mente esquece, ele lembra. Ele treme. Ele endurece. Ele adoece. E um dia, como um sussurro vindo de dentro, ele pediu para ser ouvido.

Foi quando comecei a fotografar.

A fotografia, para mim, não é só um registo. É um ritual. É o momento em que o corpo volta a falar. Às vezes aparece distorcido, às vezes desmembrado, às vezes escondido em objetos ou tecidos. Mas está lá. Cada imagem é um reflexo do que já fui e do que recuso continuar a ser. Cada enquadramento é uma tentativa de reconciliação — com o passado, com a carne, com o silêncio.

Ao tornar-me mãe, esse corpo expandiu-se. Gerar vida no próprio ventre é um acto brutal e milagroso. Senti medo de repetir o ciclo. Tive de me sentar diante do espelho da infância, reconhecer os traumas, e escolher outro caminho. A maternidade trouxe-me de volta à menina que eu fui. E foi nesse retorno que comecei a construir outra mulher. Mais inteira. Mais atenta. Mais minha.

Hoje, o corpo é território e é linguagem. É lugar de criação, de denúncia e de cura. Não o vejo como perfeito — nem quero que seja. Quero que fale. Que diga o que antes foi calado. Que abrace o que antes foi rejeitado. Que ocupe espaços. Que chore. Que ria. Que seja.

Através da arte, ofereço-lhe palavras. Dou-lhe imagem, dou-lhe voz, dou-lhe forma. Não para o embelezar, mas para o libertar.

Porque um corpo livre carrega dentro dele a possibilidade de um novo mundo.