Uma estátua de mulher, com o tronco nu, braços abertos e estendidos para cima, a cuspir um jorro de água pela boca. Uma mancha escorre lentamente da boca para o queixo, pelo pescoço, pelo meio dos peitos, pelo umbigo, escorre pela única peça de roupa, pinga gota a gota pela barra da saia. Vestígios e resquícios marcam a passagem em um caminho sobre o corpo.
A boca desenhada para cuspir e expelir, não para verbalizar.
Em resposta ao corpo-objeto representado por um sujeito soberano e universal, auto-narrativas múltiplas e heterogêneas.
É o corpo o suporte para memória das resistências e existências contra-hegemônicas. A palavra constrói caminhos no agenciamento de ferramentas coletivas. Entre cicatrizes e vulnerabilidades nós continuaremos a narrar os nossos saberes.
A materialização dessa resposta resulta em um projeto de caráter permanente, por meio de fotografias expostas no Parque das Águas, ao redor da estátua que deu início ao desconforto, "Self Portrait as a Fountain".
___ Uma imagem feminina em tronco nu a jorrar água pela boca não seria produzida contemporaneamente, seria?
No Parque das Águas, região oriental da cidade do Porto, descansa um cemitério de fontes e chafarizes retirados de outros pontos da cidade. Percorrer o espaço aponta caminho para compreender as transformações urbanas vividas na cidade principalmente no último século quando relacionamos estes pequenos elementos arquitetônicos com a seus locais de origem, suas relações com as águas urbanas.
Uma fonte chama atenção por dissonância.
Em uma privilegiada posição no Parque, voltada para o Rio Douro, uma estátua de mulher, com o tronco nu, braços abertos e voltados para cima, a cuspir um jorro de água pela boca. A dissonância está na percepção de tempo.
A estátua parece ter saído de algum lugar da cidade - como as demais fontes - mas, o espaço envoltório, embasamento, espelho d’água, indicam um desenho necessariamente contemporâneo.
Fotos e vídeos
"Self-portrait as a fountain", Julião Sarmento, 2017
Parque das Águas, Bonfim, Porto.
Uma mancha escorre lentamente da boca para o queixo, pelo pescoço, pelo meio dos peitos, pelo umbigo, escorre pela única peça de roupa, pinga gota a gota pela barra da saia, encontra de novo superfície para escorrer, descendo pelo concreto liso até encontrar o espelho d’água.
Vestígios e resquícios desta passagem marcam o caminho sobre o corpo.
A boca desenhada para cuspir, para expelir, não para verbalizar. A boca que deixa vazar e escorrer, sobre o próprio corpo.
Fragmentos do corpo feminino em cera, marcados por rastros e tinta, o ato de cortar conta histórias de um corpo feminino.
Explorando a expressão de Jack Halberstam nos processos, "cortar é uma estética feminista própria do projeto de inadequar-se como mulher." Representados em testes de processos para uma intervenção.
Nauman, Bruce. Self Portrait as a Fountain, 1966–1967, printed 1970. Whitney Museum of American Art, New York. [https://whitney.org/collection/works/5714]
Tenxeito, Non. Autorretrato como fuente. Performance, 2016. [https://nontenxeito.net/portfolio/self-portrait-as-a-fountain/]
Headless Women in Public Art. Projeto, 2019. [https://headlesswomeninpublic.art/about]
Provoust, Laure. The fountain "The end of a dream", from the exhibition "Deep See Blue Surrounding You", 2019.
Halberstam, Jack. The Queer Art of Failure. Durham and London: Duke University Press, 2020.
Spivak, Gayatri C. Pode o Subalterno Falar?. Editora UFMG, 2010.