Os fantasmas da memória perpetuam (Panorama).

 

Para chegarmos a  qualquer lugar temos que prever o lugar e imaginar a sua geografia, quero chegar ao lugar deste café, como vou? Como pergunto aos velhotes que passo na rua e certamente me iriam querer ajudar, solitários. Para perguntar tenho que saber dizer o que procuro, eu sei mas como explicar. Como dar exemplos, relações que existem na nossa realidade para expor o que quero dizer.  Não sei, porque não vejo um reflexo de mim, fora de mim. Por isso espero fazer um memorial, assim, para mim, faço cidade. Sim é paradoxal chamar cidade um lugar só para mim.

 

Letras pequenas sobre fundo negro: “Ninguém entra duas vezes no mesmo rio”

 

Voz do narrador: Grave, enrola ligeiramente as palavras mas é decidido nas frases. Dá-nos a sensação de conhecer bem o lugar. Humor seco.

 

Bem a centro do imagem a Rua do Freixo, acesso principal ao muy popular centro “histórico” do porto. Na paragem de autocarro a senhora descansa sentada, o frio aperta e a vida não espera. A flanquear a paragem de autocarro onde param tanto carreiras da STCP como Gondomarense, fábricas fechadas. A da esquerda produziu sabão azul até há pouco tempo, a outra já não está na memória de muita gente o que produzia. Agora serve de encosto aos painéis publicitários, eles próprio expectantes, as suas letras maiúsculas imperativas parecem-nos quase súplicas.

 

Agora mais ao fundo, a meio do plano, a “Rotunda do Freixo” carinhosamente apelidada pela toponímia do antigo lugar do Freixo, freixos já não se vêm a crescer tão perto, mas nas suas hermosas colinas de relva uma das  jovens Ginko Bilobas ainda mantém a sua folha, possivelmente terá os seus estranhos frutos, ninguém os apanhará nem sequer sentirá o seu cheiro a manteiga râncida.

 

Passaremos agora para o plano mais afastado que nos é visível,  bem no fundo, o topo da torre sineira da Igreja de Santa Maria de Campanhã, bonita igreja, impressionante pelo seu teto em caixotões de madeira policromada, que, parece ainda, se manter no seu estado mais original. Para essa conservação certamente contribui que poucos a conhecem, tanto devido à sua  localização erma e de pouca reputação, tal como pela relativa pobreza da sua paroquia que não terá permitido substituir por novo o que é velho.

 

Mas despedimo-nos desses lugares vizinhos para nos focar-nos no aparente. Atrás da movimentada rotunda do Freixo, vemos uma grande mancha arborizada, agora despida nas suas cores de outono. Esta zona, estranhamente preservada da urbanização e industrialização da sua vizinhança será certamente parte da propriedade original da quinta da revolta, casa solarenga do século XVII/XVIII, na qual, conseguimos ver ainda a sua bonita capela de porta vermelho sangue de boi. Temos porém de imaginar o seu portão armoreado, que é encimado por um enorme, exagerado e intrincado brasão de família em granito. A grande coroa vazada que lhe pertence cria em nós uma ligeira ansiedade pela sua acidental queda e pela nossa subsequente saúde.

 

Entre a quinta e a bomba da GALP corre uma rua de acesso à zona de Azevedo, ainda dentro dos limites da cidade do Porto encontra-se num estado de expectante gentrificação. Para cá dessa rua vemos uma zona com grandes árvores e umas grandes pedras espalhadas entre elas. Desconheço as origens ou justificação deste lugar, apenas sei que serve de agradável enquadramento tanto à zona recreativa da bomba de gasolina como aos painéis politicos que rodam a rotunda. À direita mal vemos um cartaz com António Costa abraçando um velhote, a falta de ideologia desta imagem, parece fazer frente à campanha de André Ventura, que, em letras garrafais azul monárquico  decreta: “PORTUGAL PRECISA DE UMA LIMPEZA”, ao lado das letras estão os alvos a abater marcados com cruzes vermelhas.

 

Chegamos agora à bomba da GALP do Freixo, local de extrema procura pelos automobilistas, motoqueiros, trabalhadores rodoviários entre outros, mas não apenas pela necessidade pragmática de colocar mais uns vinte euritos de gota no BMW, para aguentar o resto da semana. Não, este local, como em muitas outras gasolineiras, é agora lugar de encontro e confraternização: comprar tabaco, o jornal, lanchar ou simplesmente fumar um cigarro enquanto se olha a uma distância mais ou menos apropriada para as bombas. Resumidamente, o que os artistas diriam ser um “não lugar” (não pertencente à memória de ninguém) é na verdade um lugar lúdico e claramente apreciado por gentes de todas as classes sociais e perfis.

 

E assim voltamos novamente à paragem de autocarros, onde as pessoas que não podem viver nos condomínios privados do Freixo, com as suas garagens e stands de automóveis de luxo, esperam, para depois seguir caminho.