Resumo_
Numa tentativa de reconexão profunda entre o ser humano e a natureza, foi concebido um dispositivo simbólico, a que decidi chamar "facilitador do ver e do sentir". Este objeto, embora simples, revela uma intenção complexa. Trata-se de um tronco de cascas de madeira, cilíndrico, composto por madeiras cozidas e entrelaçadas com corda de sisal, com um buraco no centro que permite a inserção da cabeça, evocando a forma de um capacete. Através desta criação, procurou-se, de forma intencional, anular a presença física de um corpo feminino, integrando-o na paisagem circundante da floresta e do rio de Kuldiga. Esta fusão ocorre tanto através da imagem fotográfica como do vídeo que documenta a ação, onde o corpo nu se dissolve e se entrelaça com o ambiente, até se transformar em algo indissociável da floresta e das águas.
O corpo, no contexto da ação performativa, deixa de ser apenas carne e forma; transforma-se em elemento natural, fundindo-se com a floresta e o rio, numa simbiose perfeita. Procura caminhar para dentro das águas correntes, como se fosse uma extensão da própria natureza, anulando-se gradualmente à medida que se integra com o todo. A água do rio, as árvores da floresta e o corpo que ali habita tornam-se um só — uma entidade fluida, orgânica e indivisível.
O "facilitador do ver", apesar do seu nome, não facilita de facto a visão, pois dentro dele, esta é impedida. Desta forma, o sentido da audição ganha protagonismo. Através das pequenas aberturas do objeto, os sons envolventes do rio são amplificados, ecoando como uma presença quase palpável. O som da água corrente, a sua força bruta e o seu constante distanciamento criam uma sensação de urgência, como se o rio tentasse escapar da imagem que o contém. O cheiro a madeira húmida e a vegetação envolvente, intensificados pela proximidade das águas, invadem os sentidos, reforçando o elo entre corpo e natureza.
Este capacete, apesar de visualmente simples, apresenta um desafio físico e sensorial. O seu peso, suportado apenas pela cabeça, transforma cada passo num teste de equilíbrio. A ausência de visão obriga o corpo a ajustar-se constantemente, tateando o chão irregular e as pedras do rio, sem saber onde pousar os pés. As correntes do rio, mesmo que frágeis, dificultam o avanço da caminhada, enquanto as pedras se escondem sob a superfície, instáveis e escorregadias. Cada movimento torna-se uma dança incerta entre resistência e fluidez.
À medida que a ação progride, o corpo cede à força do rio. Submerso, é engolido pela água, desaparecendo lentamente, como se fosse absorvido pelo ambiente que o rodeia. O corpo já não pertence a si mesmo, mas ao todo que o envolve — à floresta, ao rio, à terra. Ele anula-se, dissolve-se e, finalmente, transforma-se na própria natureza que o abraça. Naquele momento, o corpo deixa de ser uma entidade separada e torna-se parte integrante do ciclo natural, fluindo com o rio e respirando com a floresta.
Através da ideia de construir uma ponte simbólica entre a cidade de Kuldiga e a floresta a envolve, surgiu a decisão de transportar um objeto da cidade para o interior da natureza. Algo que, à primeira vista, não deveria estar naquele lugar, provocando um certo desconforto, mas que, simultaneamente, criasse a ilusão de pertencer ali, como se fizesse parte do cenário há incontáveis anos. Ao chegar a Kuldiga, fui invadida por uma sensação de serenidade, como se o tempo, naquela cidade, tivesse parado. Era um tempo suspenso, um espaço criado para permitir viver, sentir e refletir. A cidade, quase deserta, com poucas pessoas a percorrer as ruas silenciosas, as casas e lojas fechadas devido ao fim de semana, transmitia uma atmosfera peculiar de quietude.
Kuldiga é, no entanto, uma cidade de rara beleza. A madeira está presente em todos os cantos: nas janelas, nas portas, nas ruas, nos bancos. A própria cidade reflete a floresta que a envolve, numa harmoniosa fusão entre o ambiente urbano e o natural. Inspirada por esta união, decidi criar uma ponte entre o ritmo do quotidiano e o tempo mais lento e contemplativo que a floresta oferece, um convite para parar, refletir e reconectar com a natureza.
Escolhi, para este propósito, uma porta amarela que, para mim, se tornou um símbolo pictórico de Kuldiga. Um amarelo suave, quase pálido, que trazia consigo uma certa beleza melancólica, como se estivesse imobilizada no tempo. A porta, sustentada por um suporte em forma de L, foi posicionada de modo a permanecer sempre aberta, como um convite silencioso à passagem, à entrada num outro mundo.
Um dos elementos cruciais foi camuflar o lado da porta voltado para a floresta, dando-lhe uma aparência de pertença àquele espaço, como se estivesse ali há décadas, fundida com o ambiente. A vegetação que a envolvia parecia abraçar este portal mágico, criando a sensação de que, há muito tempo, essa porta conectava a cidade com a floresta. Era como se, ao passar por ela, fosse possível atravessar a fronteira entre dois mundos, num movimento de reconciliação entre o urbano e o natural, entre o presente e o tempo suspenso.