Introdução
A noção de abrigo transcende a materialidade, é um conceito permeado pela proteção e autodefesa. Em um contexto mais amplo, o abrigo não é um privilégio exclusivo do universo humano, estende-se a todas as formas de vida. Essa extensão revela uma interseção fascinante entre os abrigos proporcionados pelos humanos aos animais, manifestando-se de diversas formas: desde as moradias convencionais que compartilhamos com eles, até os lares temporários oferecidos em momentos de necessidade, os resgates das ruas, os cuidados veterinários e até gestos simples, como oferecer alimento ou um mimo a um animal de rua.
Neste universo de abrigos, a exploração vai além da análise da materialidade. Surge a necessidade de investigar a teia de interações e relações que se estabelecem entre diferentes formas de vida. Nesse contexto, as palavras de Heidegger em “Art and Space” servem de inspiração, pois ele argumenta que o “espaço não é meramente um receptáculo físico; é uma entidade vinculada de maneira intrínseca à nossa existência”. Dentro dessa trama espacial, todos os seres vivos, sejam humanos ou não, estão imersos em um constante jogo de habitar um espaço e coexistir nele.
Neste projeto particular, procuro investigar e documentar dois locais às margens do rio Douro e aos abrigos dos gatos: às Fontainhas, no Porto, e a Pedra dos Gatinhos, em Gaia. Esta jornada não se limita à documentação de espaços físicos; ela estende-se a uma exploração mais profunda de como esses lugares moldam a existência dos gatos e influenciam suas interações com o ambiente e com os próprios humanos, criando seus caminhos e rotinas.
Para isso, o método de documentação é inspirado na abordagem de Francis Alÿs. Conhecido por suas práticas artísticas engajadas socialmente, Alÿs utiliza a documentação visual para relatar as complexidades das dinâmicas urbanas e sociais. Neste projeto, as metodologias de Alÿs em projetos como "Miradores" e "Don't cross the bridge before you get to the river" servem de guia, como referências de abordagem visual e metodológica.
A proposta de exibição, utilizando vídeos em edição split-screen, é uma tentativa consciente de destacar não apenas as diferenças e semelhanças entre as margens do rio, mas também entre os abrigos dos gatos. Esta escolha visual é profundamente enraizada na preocupação de Alÿs em revelar as dinâmicas espaciais e sociais subjacentes.
Essa exploração visa desdobrar as camadas contidas nas interseções entre abrigo e existência dos animais, com ou sem interferências humanas, criando uma narrativa. Ao documentar mais profundamente nesses temas, busca-se não apenas compreender, mas também ampliar o entrelaçamento de vidas que compartilham o mesmo espaço.
O levantamento
Durante a exploração de performance de Shelters com a turma, caminhei por um trajeto próximo a um antigo túnel que servia como rota para comboios, e encontrei um gato, assim como encontrei outros por toda a região das Fontaínhas.
Essa experiência inicial despertou minha atenção para algo mais notável: a existência de um número significativo de gatos de rua em Fontaínhas, que buscavam refúgio nos arredores. Como vivo perto do local, fui alguns dias observar, e eles parecem ser do local: gatos de rua, mas que todos os moradores conhecem e, eventualmente, colocam comida. Por isso, alguns estão muito bem cuidados. Com a presença do inverno, os gatos de rua procuram locais para se esconder, como embaixo de carros - o que pode ser muito perigoso caso o motorista não os veja. Alguns moradores da área também colocam caixa de papelão ou outros materiais para o abrigo deles durante os dias de chuva.
Em uma investigação posterior pelo Google Maps, identifiquei uma localidade intrigante chamada "Pedra dos Gatinhos" do outro lado do rio, em Gaia, ao longo da Ribeira. Diante dessa descoberta, decidi estudar sobre ambos os locais, para me aprofundar nos conceitos de abrigos urbanos e na presença marcante de gatos nessas áreas.
Como nas Fontaínhas já tinha constatado a coexistência de diversos gatos, transformando a região, de certa forma, em um inusitado refúgio felino, na margem oposta do rio, em Gaia, a "Pedra dos Gatinhos", destacada pelo Google Maps, suscitou minha curiosidade, então fui descobrir mais sobre o local também. Apesar do nome nos dar uma ideia de que gatos habitam ali, recentemente houve uma construção de um novo hotel, próximo ao Mosteiro Serra do Pilar, o que transformou o local em um amontoado de obras e materiais descartados. Ao caminhar por lá, na própria pedra não encontrei gatos, mas nas ruas ao redor, sim. Descobri posteriormente, ao avistar muitos turistas por lá, que a pedra é utilizada como mirador, principalmente para fotos, porém é um pouco arriscado o acesso.
Decidi, então, utilizar os gatos que encontrei nas ruas em volta à pedra como personagens do lado da Ribeira de Gaia, criando-se uma oposição aos gatos das Fontaínhas. Com essa pesquisa, foi interessante observar que os gatos que habitam os lados opostos se comportam de maneira diferente: do lado do Porto, nas Fontaínhas, eles estão mais bem cuidados, e há mais espaços para eles com ração, mantas e caixas cobertas, que os próprios moradores do local colocam. Eles também estão mais abertos a receber carinhos e aproximação de humanos, como tentei algumas vezes e levei também petiscos para oferecer. Muitos estão acostumados com a presença dos humanos, pois ficam andando próximo aos bares que são frequentados e existe essa interação.
Do lado de Gaia, a maioria dos gatos são medrosos. Não encontrei shelters feitos por humanos, e nem locais que deixem ração ou água para eles. Ao fazer movimentos de aproximação, poucos aceitaram. Como são desconfiados, a maioria se manteve embaixo de carros ou em cima de muros, até confiar que eu estava oferecendo comida. Mesmo assim, ao ouvir sons de cães, crianças, pessoas ou carros passando, eles se afastaram, com medo. Desse lado, haviam mais gatos com trela, ou seja, tinham um dono ou uma casa, mas andavam livremente pelas ruas, junto com gatos de rua - o que pode ser perigoso para gatos domésticos e seus tutores.
De maneira geral, consegue-se observar diferenças nos animais dos dois lados, assim como algumas semelhanças. Em resumo, durante o levantamento destaquei não apenas as diferenças entre os dois lados do rio, mas também a importância de considerar o contexto urbano, as interações humanas e as condições específicas de cada localidade ao abordar a presença desses animais.
Metodologias
Para o registro e resultado final, considero principalmente a abordagem de Francis Alys, integrando elementos poéticos, intervenção urbana e documentação em vídeo.
Especificamente influenciada pelo trabalho "Miradores", no qual ele apresenta dois lados de uma paisagem urbana na mesma tela usando a técnica split-screen, planejo apresentar imagens em dois lados. De maneira semelhante, meu projeto tem um formato de tela dividida para exibir Fontaínhas e Pedra dos Gatinhos, dois locais em lados opostos do Rio Douro. Inspirado em seus temas, pretendo explorar mais a essência dos espaços urbanos e abrigos nesses lugares, bem como a coexistência entre gatos de rua, a cidade e a interferência humana.
Seguindo também a filosofia de Martin Heidegger, meu projeto busca explorar a interseção entre arte e espaço, investigando como esses ambientes influenciam a existência dos gatos e sua interação com o entorno. Focando na noção de que o espaço é mais do que um mero recipiente físico, podendo ser um gesto de cuidado para com um gato, uma oferta de comida ou uma interação com outros seres, incluindo humanos. Essa abordagem vai além das concepções convencionais de espaço, visando compreender o significado e a influência dessas interações mais sutis no contexto do ambiente em que os gatos habitam.
Dessa forma, meu projeto procura mergulhar nas metodologias de Alys e Heidegger para criar uma narrativa visual que não apenas registra a presença dos gatos em Fontaínhas e Pedra dos Gatinhos, mas também explora as relações entre esses felinos, o ambiente urbano e as ações humanas.
Referências
O duo português Mariana Caló e Francisco Queimadela, em sua instalação 'Habitantes de Habitantes - Os gatos do cemitério de Agramonte', serviu como inspiração visual para o meu projeto. Nessa instalação, um vídeo captura gatos no cemitério, habitando o local como seu próprio abrigo.
O vídeo foi utilizado como referência artística para as imagens produzidas por mim no projeto, principalmente para os planos mais fechados, a câmera parada e a duração do vídeo. Essa abordagem, que destaca os gatos como habitantes autênticos do espaço, contribui para a narrativa visual que desenvolvi.
O vídeo
Para a execução do vídeo, acessei os mesmos lugares que fui durante o levantamento. Durante a exploração nas Fontaínhas, levei uma câmera, um tripé pequeno, um pouco de ração e uma embalagem de petisco para gatos. Durante esse dia, passei de 3 a 4 horas andando pelo local, desde locais que haviam mais pessoas e outros que não haviam tantas. Para minha surpresa, foi incrivelmente fácil encontrar gatos e abrigos feitos pelos moradores para eles. A maioria foi muito carinhoso, apesar de terem alguns receios ao se aproximarem de pessoas - o que é um comportamento normal para animais de rua, que constantemente são machucados por próprios humanos ou por carros.
Para a exploração em Gaia, levei os mesmos equipamentos, mas precisei ir em dois dias. No primeiro dia, encontrei apenas dois gatos: os dois estavam extremamente machucados e assustados, a ao me aproximar, assustaram-se e saíram de perto. Depois de caminhar por 2 horas e voltar ao ponto inicial (a Pedra dos Gatinhos), resolvi voltar em outro dia. Uma semana depois, em um dia com mais sol, voltei ao local e decidi andar pelas ruas em volta, onde existem muitas casas e moradias. Lá, encontrei muitos gatos de rua embaixo de carros. Caminhei por mais algumas ruas onde existem muitas casas, em um contexto mais calmo que as Fontaínhas, pois parecia ser um local apenas com moradores, sem turistas ou estabelecimentos, e encontrei gatos em vários pontos dessas ruas.
Para a montagem, depois da edição dos vídeos, decidi por um storytelling que mostra um pouco sobre essa interação dos gatos com o ambiente e com humanos: no início dos vídeos, os gatos estão em seus próprios abrigos, locais já conhecidos por eles, relaxados. Logo, a interação humana (a minha), ao oferecer carinhos e comida, vem sendo mostrada aos poucos, como uma tentativa de aproximação. Quando eles recebem essa interação, se mostram mais abertos à interação. Em algumas partes dos vídeos, também podemos perceber que eles se assustam facilmente quando passam carros, quando há barulhos mais fortes (como uma sirene), e quando passa um cão, e quando isso acontece, eles procuram o espaço que estavam anteriormente para se sentirem mais seguros.
O resultado é um vídeo de 2’30”, nomeado Ribeiras, que pode ser acessado pelo link: https://vimeo.com/imanapaula/ribeiras
Conclusão
Concluindo este projeto de pesquisa e documentação intitulado "Performing the Shelter: Ribeiras," observo que a exploração da interseção entre abrigo, espaço urbano e a coexistência entre humanos e gatos revelou nuances complexas nas duas margens do Rio Douro. Inspirada nas metodologias de Francis Alys e na filosofia de Martin Heidegger, busquei ir além da análise da materialidade dos espaços, adentrando interações e relações que moldam a existência e comportamentos dos gatos nessas localidades.
Durante o processo, permiti-me destacar não apenas as diferenças e interações com os gatos, mas também a importância de considerar o contexto urbano específico, apesar de estar com uma câmera, não apenas documentar, mas narrar as experiências dos gatos em seus abrigos, revelando suas interações, temores e adaptações ao ambiente.
Por isso, "Ribeiras" registra a presença dos gatos e busca pensar nas complexidades das relações entre animais, ambiente e sociedade. Este projeto documenta as nuances de abrigo e convida à reflexão sobre como as interações sutis em um espaço urbano podem moldar a existência de todos os seres envolvidos.
Referências
ALYS, Francis. Miradores. Francis Alÿs. Avaliable: <https://francisalys.com/miradores/>. Access: 7 Jan. 2024.
ALYS, Francis. Don't cross the bridge before you get to the river. Francis Alÿs. Available: <https://francisalys.com/dont-cross-the-bridge-before-you-get-to-the-river/>. Access: 7 Jan. 2024.
Heidegger, M. Art and space. Man and World, 1973.
CALÓ, Mariana; QUEIMADELA, Francisco. Inhabitants of Inhabitants. Mariana Caló e Francisco Queimadela. Available: <https://marianacalo-franciscoqueimadela.com/portfolio/habitantes-de-habitantes/>. Access: 7 jan. 2024.