De um naufrágio pode não restar nada. Parece até mais plausível que seja assim, ou então que muito pouco resista à catástrofe. Talvez aquilo que reste sejam apenas lascas de madeira, trapos de tecido ou algum objeto qualquer que a sorte e a correnteza tragam ao alcance desse desgraçado que está lançado ao mar. Mas seja qual for o destroço que lhe caia à mão, este passa a ter um valor imenso. Primeiro, porque, se a coisa não afundou, provavelmente é por ser algo leve, flutuante. Converte-se, então, numa bóia de salvação. Segundo, pois o náufrago vai precisar de ferramentas úteis caso sobreviva ao acidente e lhe surja de novo um chão firme sob os pés.

É natural que, numa aventura desse tipo, acabe-se por cair em terras desconhecidas, talvez ermas e perigosas. Aquele artefato de que agora tem posse se torna, então, o último resquício do mundo conhecido. É um resultado do conjunto dos saberes que sua cultura de origem foi capaz de criar, e, desse modo, um símbolo identitário que dá força ao náufrago para cumprir seu destino, mantendo viva a lembrança de que tem um lugar para onde voltar. Agora, ao avançar pelo território estranho, o explorador pode empunhar tal égide protetora. Pode também modificá-la, como fez Atena ao revestir o escudo paterno de um novo couro e ao cobri-lo de poderes ainda mais assombrosos. (Ovídio, 2017) Assim, novos elementos encontrados pelo caminho podem se juntar ao pequeno espólio, seja provendo o náufrago de novos instrumentos, seja amalgamando tudo num dispositivo híbrido.

Se, diante de tamanho azar, o viajante deve permanecer firme no propósito inicial da empreitada ou se, imposta a dura realidade, deve recalcular a rota para ao menos retornar com vida à casa, cabe a ele decidir. Mas será que existe uma chance real de alcançar aquilo que cobiçava? Simbad, de epíteto “o Marujo”, teve sete viagens, todas elas repletas de desventuras: foram tempestades, ataques de criaturas marinhas, roubos, traições, desencontros… quase sempre com naufrágios envolvidos. Apesar disso, a cada vez que Simbad voltava a Bagdá depois de um novo desastre marinho, sua fortuna aumentava, além de seu reconhecimento como grande navegador. (Galland, 2017) Há de se refletir bem sobre esse curioso caso de um marujo cuja fama sobrevive aos séculos e ao fato de nunca ter conseguido fazer uma viagem segura. Naufragar não terá sido sua desgraça, mas sua grande sorte?

Nós, que mal desfizemos as amarras entre o barco e o cais, e que ainda temos o porto ao alcance da vista, não sabemos o tamanho da tormenta que está à nossa espera. Pode não ser nada tão assustador como nos narram os mitos, talvez por serem moralizantes e terem a função de nos manter cautelosos. Mas, caso os ventos sejam fortes demais e as ondas, maiores do as que conseguimos cruzar, restará uma história a contar. Se a narração dessa jornada causará repulsa, compaixão, admiração ou temor aos ouvintes, temos o consolo de saber que a tragédia é, pelo menos para Aristóteles, superior à comédia. (Aristóteles, 2003)
A base mitológica que está no drama trágico e na poesia épica nos acompanha desde os tempos mais antigos, e não será agora que isso se extinguirá dos modos como construímos nosso imaginário. (Vogler, 2003) Mas o substrato aquoso dos mares e dilúvios pode ser substituído por algo de densidade diferente, talvez como o plasma ou o vácuo espacial. As odisseias de Dave Bowman (Kubrick, 1968) e de Major Tom (Bowie, 1969) já podem até ser consideradas antigas num mundo marcado pela aceleração exponencial das tecnologias e de suas obsolescências. O fato é que algo da ficção científica sessentista agora vem se efetivando, embora com algum atraso. Não foi em 2001 que pudemos criar um vilão de inteligência artificial perigoso e assustador o suficiente. Mas 2023 chegou tirando da letargia aquele medo que apenas aguardava o momento certo para despertar.

Embarco nesta aventura acompanhado, não do fictício e ardiloso HAL 9000, mas de uma tripulação formada por autômatos reais e operacionais, nomeadamente, ChatGPT, Bard, AlphaCode, Github Copilot, ERNIE 4.0. Outros poderão se juntar à esquadra ao longo do caminho. Assumo o risco de me aproximar de certos companheiros de índole duvidosa, mas nunca esperei deles nenhuma lealdade. Os códigos envolvidos aqui não são os da moral, são os das linhas de programação. Se isso me põe em iminente risco de sabotagem ou mesmo da formação de motins, parto consciente dos inevitáveis acidentes e de um eventual desenlace catastrófico para a jornada.

Caso o naufrágio aconteça e tudo se arruíne, posso me ver apenas com uma caixa preta e impenetrável nas mãos. Isso não me vale de nada. É na componente imaterial desse aparato que está o que interessa (Flusser, 2006) e é na abertura da máquina à indeterminação do mundo exterior que seu papel se cumpre. (Simondon, 2018) Portanto, não basta salvar o hardware do desaparecimento nas profundezas do mar ou na imensidão dos céus. É preciso que suas funções “vitais” estejam em ordem e que sua inteligência, mesmo que artificial, permaneça bem ajuizada.
o grande marujo que sempre naufraga
agora submerso em ondas eletromagnéticas
I
II