Em 2021, a reitoria da Universidade do Porto desafiou algumas instituições culturais, entre as quais Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, a criar um conjunto unidades curriculares de competências transversais que contribuíssem para abrir horizontes e enriquecer a formação académica dos seus estudantes. Dentro deste enquadramento, eu e o Professor Mário Bismarck consideramos que seria importante repensar a clássica ligação entre o Desenho e a Medicina, compreendendo de que forma é que o exercício do desenho poderá contribuir atualmente para melhorar a capacidade de observação, compreensão e consolidação dos conhecimentos explorados nos cursos de Medicina.
Partindo do princípio que estes estudantes aprendem e se debatem com a necessidade de diagnosticar através da observação, o exercício do desenho pode melhorar a sua capacidade de observar, analisar e entender as estruturas do corpo humano, promovendo em simultâneo o desenvolvimento de uma linguagem visual útil na comunicação com profissionais de saúde e doentes. O reconhecimento destas valências contribuiu para a concepção da unidade curricular de Desenho e Observação para Médicos, acessível aos estudantes de Medicina e Medicina Dentária do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto (FMDUP).
Com a duração de um semestre, esta unidade curricular explora um programa focado numa abordagem aos conhecimentos básicos da literacia e linguagem visual do desenho, dividido em quatro módulos: anatomia e proporção; observação e análise do doente; prática do desenho no campo da cirurgia e representação gráfica de estruturas microscópicas. Esta estrutura estimulou a curiosidade e o interesse manifestado pelos estudantes ao longo do semestre, assegurando desta forma o acesso à UC no ano letivo de 2022/2023. A sua continuidade irá contribuir para melhorar a robustez do programa proposto e permitir em simultâneo a análise do desenho como ferramenta pedagógica na área da Medicina.
Considerando o trabalho que foi desenvolvido com os estudantes na primeira edição desta UC, este artigo procura partilhar os resultados obtidos ao longo do semestre e problematizar a utilidade do desenho enquadrado na formação académica dos estudantes de Medicina e Medicina Dentária.
Nota introdutória: o conteúdo desta exposição foi anteriormente exposto no artigo "Desenho e Observação para Médicos: o desafio de ensinar os estudantes de medicina a desenhar", apresentado na CONFIA'23 - 10 International Conference on Illustration and Animation. Fonte: https://confia.ipca.pt
Teatro Anatómico Nuno Grande, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto, 2022
A primeira edição da UC de Desenho e Observação para Médicos foi lecionada a partir de sessões com um carácter prático e laboratorial (2h semanais) compiladas em 26h de contacto presencial por semestre. As aulas desenvolveram-se entre sessões teórico-práticas através da exposição oral dos conteúdos abarcados pelo programa e um conjunto de exercícios que procuraram explorar a prática do desenho assente na experimentação e consolidação dos conceitos expostos.
Os exercícios incidiram, numa fase inicial, sobre o desenho de observação do natural focado na análise das estruturas internas do corpo humano. Esta abordagem foi suportada pela interação dos estudantes com o Teatro Anatómico Nuno Grande (ICBAS) e o seu espólio de peças com o objetivo de estimular o primeiro contacto com o desenho. Á medida que os estudantes iam dominando os materiais, a gramática e as estratégias do desenho de observação, introduziram-se novos exercícios ligados ás questões da comunicação visual, com um enfoque particular no desenvolvimento de uma linguagem gráfica útil na interação com os doentes.
Dentro deste enquadramento, a metodologia de ensino implementada nesta UC foi legitimada através de um encadeamento de quatro ações: observar, desenhar, aprender e comunicar. Observar constitui-se como o pilar essencial a partir do qual se desencadeia o exercício do desenho. Como consequência desta ação os estudantes aprendem inicialmente a representar o corpo humano, desenvolvendo através de exercícios práticos a sua perceção visual, na espectativa de compreender, assimilar e memorizar a morfologia das estruturas anatómicas internas. Esta estratégia potencia o desenvolvimento da memória visual que poderá ser útil na construção de uma linguagem gráfica aplicada à comunicação com os doentes no futuro.
Este curso pretende alcançar as seguintes competências:
- apreensão dos principais conceitos e processos da história do desenho de observação, salientando a sua relação com a ciência;
- amadurecimento das capacidades percetivas no entendimento e representação da realidade observada, nomeadamente no que respeita ao estudo da forma (morfologia)
- consolidação dos processos básicos de representação gráfica com vista à compreensão do corpo humano e respetiva comunicação de conceitos ligados ao universo da medicina;
- desenvolvimento de estratégias de observação, análise e representação úteis ao exercício da medicina;
- entendimento e desenvolvimento prático da linguagem visual, adaptada à comunicação com profissionais de saúde e doentes.
Sigismond Laskowski e Sigismond Balicki, Anatomie normale du corps humain: atlas iconographique de XVI planches, 1894
Fonte: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/laskowski_home.html
A exploração do primeiro módulo da UC de Desenho e Observação para Médicos fomenta o desenvolvimento da perceção visual, intimamente ligada à prática do desenho de observação, a partir de três conceitos fundamentais: forma, proporção e volume. Este encadeamento focou inicialmente a representação das morfologias presentes nas estruturas do corpo humano, através do contorno dos seus limites, para num segundo momento se introduzir a importância da proporção, essencial ao posicionamento e organização dos elementos que compõe a forma, e terminar com a conquista da tridimensionalidade.
Dentro deste enquadramento, os primeiros exercícios propostos focaram a observação de um conjunto de órgãos de porco – coração, fígado e vísceras – com o objetivo de explorar a sua morfologia através da perceção e representação da forma geral, dos seus limites (contorno) e do espaço que estes elementos ocupam. Ao contornar com um lápis os limites da forma, os estudantes conseguiram abstrair-se da complexidade dos elementos que compõe as estruturas anatómicas, simplificando deste modo o exercício do desenho de observação. Privilegiou-se a utilização livre de materiais riscadores (canetas, lápis de cor, grafite, marcadores, entre outros) no contacto com o suporte de papel, promovendo acima de tudo um espaço de experimentação prática e reflexão sobre a importância da observação para a concretização do desenho.
O conhecimento adquirido acerca da representação da forma serviu de elo de ligação para se introduzir a noção de proporção, considerando o entendimento das relações existentes entre as diferentes partes que compõe o corpo humano. Se anteriormente o foco incidia no reconhecimento dos limites presentes nas diferentes estruturas do corpo humano, o estudo da proporção acrescenta um grau de complexidade ao desenho porque desafia os estudantes a comparar, medir e a posicionar corretamente todos os elementos observados, com o objetivo de criar uma representação credível acerca do corpo humano.
Tomando como ponto de partida a observação externa e interna do corpo humano, o estudo da proporção abordou algumas estratégias úteis à conceção do desenho, entre as quais: a utilização dos cânones, problematizando a divisão do corpo em várias partes iguais através dos exemplos de Policleto, Lissipo e Leonardo da Vinci, a implementação dos processos de medição e comparação entre as alturas e larguras observadas e o seu respetivo nivelamento. A aplicação prática desta metodologia procurou desenvolver a coordenação entre o olhar e a utilização do lápis como um instrumento analítico preponderante para o desenvolvimento do desenho. É através da ligação entre estes dois elementos que os estudantes procuram observar e analisar o corpo humano, utilizando simultaneamente o lápis para medir, comparar e relacionar todos os elementos que o compõe.
O estudo da proporção conduziu à necessidade de entender a volumetria do corpo humano, destacando em primeiro lugar a modelação da estrutura exterior para depois se compreender a representação das estruturas internas. Os desenhos realizados sobre o sistema muscular privilegiaram a utilização da linha na construção do volume, considerando o potencial deste elemento gráfico no processo de mimetização das texturas observadas nos músculos. O estudo do volume compreendeu ainda a representação técnica do claro-escuro focada na análise do contraste entre luz e sombra com vista à representação do volume de um objeto. Foi a partir da interpretação da luz e da sua reflecção nas superfícies que se procurou representar a tridimensionalidade de algumas estruturas anatómicas (recorrendo à observação de imagens sobre dissecação) com o objetivo de mimetizar esses efeitos numa superfície bidimensional.
Autor desconhecido, ilustração de doenças relacionadas com o sistema digestivo, 2000
Fonte: https://anatomywarehouse.com/diseases-of-the-digestive-system-anatomical-chart-a-103795
Ana Zão, Desenho realizado em contexto hospitalar. Explicação da intervenção terapêutica ao doente: exercícios específicos e estimulação elétrica neuromuscular para “re-centrar” a rótula, 2022
O segundo módulo integra prática do desenho no processo de observação e análise do doente, considerando o estudo de doenças e respetiva formulação de diagnósticos. Neste contexto, o desenho é entendido como uma forma de expressão universal que opera no domínio do visual com o objetivo de complementar o discurso médico. Diante da terminologia complexa que caracteriza o universo da medicina, a natureza expedita do desenho realizado em consulta pode ajudar à visualização dos problemas apresentados pelo doente. É a partir desta base que se enquadram um conjunto de exercícios que procuraram fomentar o desenvolvimento prático da linguagem visual, adaptada à representação gráfica de patologias e da componente terapêutica, com um enfoque na comunicação com os doentes. Dentro da abordagem prática realizadas na sala de aula, destaca-se um exercício que teve por base a análise de um caso clínico que desafiou os estudantes a identificar a doença e a desenhar o plano de tratamento que seria comunicado ao doente. Os desenhos resultantes desta experiência conduziram ainda à simulação de uma consulta, na qual os estudantes foram confrontados com a necessidade de desenhar e explicar a estratégia terapêutica em tempo real, conciliando desta forma o discurso médico com a linguagem visual do desenho.
Exercício – Comunicação com o doente
Materiais: papel A3, grafite e caneta preta / Tempo: 1h
Objetivos: entendimento do desenho como instrumento de comunicação com o paciente; construção de diagnósticos com o auxílio do desenho; representação gráfica de patologias e da componente terapêutica aplicada aos doentes.
1 – Consultar a informação sobre o caso clínico correspondente aos interesses do estudante (ver enunciado).
2 – Realização de um conjunto de esboços que deverão ter por base a informação retirada do caso clínico, criados a partir da memória (sem o auxílio de desenhos ou imagens) e do conhecimento prévio que os estudantes têm sobre o corpo humano.
3 – Simulação de uma consulta de suporte à realização de um desenho rápido focado na comunicação do plano de tratamento apresentado no caso clínico ao doente. Neste desenho o estudante irá explicar o plano de tratamento ao doente enquanto desenha.
Pensar a doença através do desenho, criação de cartazes sobre a comunicação de várias doenças e respectiva sintomatologia, 2022
Max Brödel, Diseases of the Kidneys, ureters and bladder, 1914
Fonte: https://www.oldbookillustrations.com/illustrations/muscle-splitting-incision/
Jean Baptiste Marc Bourgery e Nicholas Henri Jacob, Iconografia d'anatomia chirurgica e di medicina operatória, 1841
Fonte: https://hyperallergic.com/257404/gruesome-and-surreal-surgical-illustrations-from-the-15th-19th-centuries/
O terceiro módulo volta a sublinhar a capacidade comunicativa do desenho, mas debruça-se sobretudo na possibilidade de utilização desta ferramenta na estruturação do pensamento e compreensão de alguns procedimentos cirúrgicos. O objetivo não se foca apenas na representação da cirurgia, mas sim na oportunidade de ver o problema através do desenho, abrindo a possibilidade de traçar, formular, selecionar, excluir e enfatizar os contornos do assunto que cada estudante quis analisar. Na ativação deste processo, os estudantes foram incentivados a fazer um reconhecimento dos principais instrumentos cirúrgicos e da forma como estes são manipulados pelas mãos na ação da cirurgia. Realizaram alguns desenhos de observação e memória que serviram de preparação à representação final da cirurgia selecionada por cada estudante. No suporte de papel foi possível pensar sobre as diferentes etapas da cirurgia, perceber o que é importante representar, qual é a sequência das diferentes ações e como é que se irá dar forma à informação implícita no procedimento.
Exercício – Analisar uma cirurgia através do desenho
Materiais: papel A3 e escolha de materiais livre / Tempo: 2h
Objetivos: análise e de um procedimento cirúrgico através do desenho, construção de um guião sobre as principais etapas, criação de uma narrativa visual a partir da qual se consiga explicar as fases do procedimento.
1 – Recolha de um conjunto de referências visuais sobre uma cirurgia à escolha do estudante (vídeos, desenhos e fotografias). Análise e seleção do material recolhido.
2 – Criação de um guião escrito sobre as principais etapas identificadas na cirurgia. Desenvolvimento de alguns esboços nos quais se ensaie algumas possibilidades de representar a informação presente no guião.
3 – Criação uma narrativa visual a partir da qual se possa explorar a preparação de uma cirurgia, chamando a atenção para os momento-chave do procedimento.
Robert Hooke, representação da estrutura celular de um pedaço de cortiça, 1665
Fonte: https://askabiologist.asu.edu/robert-hooke-1
Reconhecendo no desenho a capacidade de desmontar e interpretar o conhecimento científico, o módulo dedicado à representação de microscopias integrou um conjunto de processos e técnicas ligadas à construção de modelos visuais, com o objetivo de desmistificar a utilização do desenho face à necessidade de compreender e consolidar a complexidade epistémica abarcada pela Histologia. Na impossibilidade de trabalhar a partir da observação direta ao microscópio nos laboratórios das diferentes faculdades de Medicina, os estudantes analisaram um conjunto de fotografias correspondentes a vários cortes histológicos sobre a pele da planta do pé, disponibilizado no Atlas de Histologia da Universidade Federal de Goiás. [1]
Assente na observação das imagens, os estudantes começaram por estudar as particularidades intrínsecas ao tecido da planta do pé e identificaram um conjunto de estruturas: epiderme, derme, hipoderme e respetivos componentes adjacentes com o objetivo de enquadrar e localizar a presença destes elementos no desenho, reconhecendo em simultâneo a sua ordem, composição, morfologia e textura. A construção deste desenho teve como ponto de partida a criação de uma grelha sobre a imagem do corte histológico e respetiva replica no suporte de papel. Ao circunscrever a imagem num sistema reticular gerou-se o guião que orientou o desenvolvimento da representação, sobretudo na necessidade de posicionar corretamente as estruturas anteriormente identificadas. Este processo de mapeamento, comummente utilizado na produção da ilustração científica, facilitou a implantação do desenho no suporte e abriu a possibilidade de se explorarem uma variedade de técnicas e materiais (lápis de cor, canetas e marcadores) evidenciadas num conjunto de referências visuais que foram apresentadas na sala de aula.
[1] Atlas de Histologia UFG, (2020) https://histologia.icb.ufg.br/sobrenos.html
A imagem é uma ferramenta incontornável no ensino e aprendizagem da medicina. É a partir da visualização que se estimula, analisa e questiona o conhecimento entre professores e estudantes. Na sala de aula as representações têm o poder de revelar, tornar explícito, fortalecer a imaginação e testar conhecimentos diante das limitações do discurso verbal e escrito. Não se aprende sem imagens, muito menos num curso de medicina que se debruça na capacidade de observar, interpretar e conhecer o corpo humano e as suas estruturas funcionais, para posteriormente estar apto a enfrentar os desafios visuais do diagnóstico clínico.
Apesar de existir a necessidade de se desenvolver as habilidades de análise visual, os estudantes passam grande parte do curso a observar e a interpretar as representações que se encerram na história da medicina, muitas delas produzidas por ilustradores científicos, evidenciando uma passividade consentida no que toca a prática do desenho. Esta atitude é fortemente sublinhada pela máxima de que é preciso ter um dom para desenhar e isso inibe a possibilidade dos estudantes criarem modelos visuais úteis ao entendimento e memorização dos conteúdos lecionados nos cursos de medicina. Por outro lado, e face à complexidade das matérias abordadas, existe uma fatia considerável de estudantes que veem no desenho uma ferramenta de estudo.
Numa tentativa de ultrapassar barreiras e preconceitos, a UC de Desenho e Observação para Médicos procurou aproximar a prática do desenho aos estudantes de medicina com o objetivo de trabalhar questões técnicas e processuais que possibilitem a utilização do desenho no contexto das aprendizagens realizadas nos cursos de medicina. Ao longo do semestre, os estudantes puderam apreender os principais conceitos e processos integrados na história do desenho, salientando a sua relação com a ciência, e amadurecer as capacidades percetivas no entendimento e representação da realidade observada, nomeadamente no que respeita ao estudo da forma (morfologia). A consolidação dos processos básicos de representação gráfica, conduziu à compreensão do corpo humano e respetiva comunicação de conceitos ligados ao universo da medicina. No final do semestre, o domínio da linguagem visual foi alcançado pela maioria dos estudantes que reconheceram as mais valias do desenho enquanto ferramenta de comunicação no contacto com profissionais de saúde e doentes.