Esta é a página acessível que é derivada da https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872. Esta página que entrelaça em uma específica combinação os arquivos multimídia e os textos pretende facilitar a leitura da exposição, mas em nenhum caso substituí-la. A exposição ainda fornece múltiplas entradas. 

Descrição da página: Da Imagem Ausente de Ludgero Almeida fala de apagamentos na construção da história oficial  da indústria algodoeira do Vale do Ave em Portugal. Destitui da imagem escultórica a narrativa elogiosa convidando o leitor a deambular pelos arquivos encontrados pelo autor, durante suas caminhadas na região, à procura de outros resquícios que possam emergir memórias capazes de dar pele a outros corpos.


Da Imagem Ausente


Ludgero Almeida


“Da Imagem Ausente”, de Ludgero Almeida, apresenta-se como uma investigação centrada nas reverberações da prática artística perante os arquivos institucionais e privados, as imagens e objetos-vestígios encontrados no Vale do Ave relacionados com a história, o imaginário e a memória do itinerário do algodão e da indústria têxtil algodoeira.


Através de caminhadas, do respigo de imagens, documentos e objetos, ativam-se linguagens e processos artísticos que questionam os discursos monolíticos da história e os modos como ela se inscreve nos espaços de enunciação pública e nos arquivos, constituindo as identidades regionais e nacionais, os imaginários individuais e coletivos.


Ao apelar à fabulação, esta investigação problematiza as ausências e os negativos produzidos por uma história monumental, fazendo deles espaços aporéticos, mas igualmente produtivos e agenciadores de outras narrativas potenciais sobre o passado, presente e futuro.

Video descrição: Vídeo em preto e branco, sem som, imagem em negativo de uma peça de algodão aberta e amassada com deslocamento da câmera na vertical. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1938690 Almeida, Ludgero (Diretor). (2022). 'MapaHistória'.

Introdução

Investe-se aqui na possibilidade de que a prática e a investigação artística possam, através das suas ferramentas particulares — conceptuais, simbólicas, discursivas, imagéticas, narrativas e formais —, fomentar um debate crítico sobre a fabricação da história associada àqueles que foram e continuam a ser os itinerários algodoeiros até e através do Vale do Ave.

 

Estes itinerários diversos, temporal e espacialmente inscritos numa geografia local e global, nacional e transnacional, revelam as profundas imbricações entre as condições de desenvolvimento e crescimento da indústria têxtil neste território (Alves 1999; Pereira 2019). Revelam também as suas dependências inequívocas de uma cultura extrativista e colonizadora (Isaacman 1996; Isaacman & Roberts 1995; Saraiva 2022) — dos corpos, do biossistema, do território, da cultura, do próprio imaginário e da memória.

 

Os fluxos do algodão são feridas não suturadas e incompreendidas, por assim dizer, na produção do conhecimento histórico crítico e, particularmente, na imagética — há sempre imagens ausentes ou dissimuladas no discurso.

 

Nesta investigação, a própria materialidade do algodão — purificada, amaciada, embranquecida — é a substância que em termos metafóricos define o tecido luminoso da legibilidade, o texto no qual se inscrevem os conjuntos dos eventos elementares, os atores e os sentidos irrefutáveis que custeiam a vigência de uma história monolítica.

 

Esta superfície revela-nos os ditames dos motores do progresso e do desenvolvimentismo, reflete os paradigmas e os regimes que orientaram, desde os primórdios da industrialização, a produção, o trabalho, a inquestionabilidade de determinados modos de vida, o suposto sucesso da indústria e as suas benesses.

 

Se, por um lado, o arquivo, a imagem fotográfica, o documento, o monumento e a literatura insistem em narrar uma visão consensual do poder (Mbembe 2002), é no espaço em “negativo” da história que surge a vida impregnada pela divisão de classes, pelo colonialismo, pelo racismo, pelo machismo, pelo conservadorismo, pelas violências epistémicas, pelo roubo do tempo e de perspetivas de futuro.

 

Confrontar a unidirecionalidade da história oficial e as suas perpetuações no agora — as motivações e operações do dizer historiográfico, a descriminação pela palavra, a síntese da descrição, as imagens soberanas desprovidas de um questionamento sério acerca das suas “dimensões veritativas”, dos seus paradoxismos e espessuras semânticas — surge como um exercício primacial para conjurar, nas entrelinhas do dito, as fábulas do ausente, das histórias e das imagens retiradas das suas potencialidades transformativas e utópicas.

 

Este lugar entre texturas — entre textos — é sempre uma aporia: a presença da representação implica a ausência do representado e, igualmente, aquele que está ausente não é articulável a partir do inarticulado. Não é possível desenhar no interior da penumbra total do discurso sem recorrer a alguns dos reflexos do que se encontra presentificado. Assim, como abrir espaços nas porosidades do registo, da imagem fotográfica, do documento, para que o ausente se consubstancie, respeitando as opacidades da interpretação? Como reconhecer neles os seus sintomas e espectralidades, as suas “pulsões de morte”, os seus “males de arquivo” (Derrida 2001)?

 

Ao mesmo tempo, qual o contributo poético e imaginativo dos objetos e das imagens sobreviventes que foram descartadas à consignação e à finalidade do arquivo institucional? E quais as suas capacidades de produção de outros sentidos e de outros modos de contradizerem as imagens feitas oficiais? Como ocupar este espaço latente entre a visibilidade e a invisibilidade?

Texto anexo à Introdução

O Vale do Ave, território localizado a noroeste de Portugal, é uma região que sofreu, desde a segunda metade do século XIX, os efeitos e impactos de um processo de industrialização massivo, impulsionado pela proliferação de um sistema interdependente de fábricas de maior ou menor dimensão, de confeções e de trabalhos feitos, à margem da lei, nos domicílios.

 

A emergência destas indústrias baseou-se, desde a sua origem, numa exploração massiva da mão de obra em condições miseráveis, na poluição e destruição ambiental. Com o Decreto n.º 11.994 de 28 de julho de 1926, assinado dois meses após o golpe que depôs a legislatura republicana, e com as subsequentes orientações ainda mais colonialistas do Estado Novo — regime fascista português —, impôs-se o plantio do algodão nas antigas colónias de Angola e Moçambique, como forma de evitar a importação da fibra produzida nos Estados Unidos e Brasil.


Esta política económica amplificou o caráter extrativista do plantio algodoeiro e incrementou uma dependência entre o campo algodoeiro e a fábrica, assim como uma dupla exploração dos corpos: dos cultivadores de algodão em situação análoga à escravatura e dos operários do Vale do Ave.

Caminhar

Desde o ano de 2019 desenvolvo caminhadas na região do Vale do Ave acompanhado pelos artistas Pedro Bastos e Max Fernandes. Partimos de madrugada em algum local definido ao longo da linha de comboio ou nas margens dos rios Ave e Vizela e a partir daí seguimos trajetórias relativamente aleatórias, determinadas pelas aparições da paisagem e pelas vontades mais ou menos conscientes que cada um de nós manifesta.


Dei início a estas caminhadas numa tentativa de geração de vivências subjetivas e/ou coletivas na paisagem que consumassem temporalidades abstraídas do trabalho e da produção utilitária, como constituição de momentos de partilha reflexivos, contemplativos, críticos, artísticos, mas sobretudo como desejo de reposicionamento dos nossos corpos e dos corpos das nossas ideias no interior de um território profundamente familiar aos três.


A ação caminhatória impactou o trabalho artístico de cada um de nós, provocando ecos subjetivos e compreensões distintas acerca dos sentidos do caminhar, influenciados pela multiplicidade dos olhares e pelo conjunto das nossas referências artísticas, políticas, poéticas e filosóficas.


No meu caso particular, as caminhadas passaram a orientar os movimentos, os ritmos, bem como a organização e sistematização da minha prática investigativa em arte relacionada com o tema da história algodoeira. Num certo sentido, elas tornaram-se para mim algo que extravasa o próprio âmbito da deslocação física: não são uma ação exclusiva dos pés, mas moções que se configuram igualmente no plano da linguagem, da escrita e da própria criação artística (Solnit 2014; Jacques 2012).

 

A minha pesquisa adotou-as como ferramentas metafóricas dos caminhos multidisciplinares e miceliformes, nos quais os fluxos das ideias e dos significados artísticos podem ser redirecionados e possibilitados pela surpresa, levando a trajetos e resultados imprevisíveis.

 

Como já referi, as caminhadas impeliram à confrontação, por vezes dolorosa, com um território profundamente familiar. Ao permitirem fazer jogos de distância e aproximação, de atração e repulsa, de paragem e movimento, elas devolveram a viabilidade da realização da diferença no conhecido. Não se trata de procurar a alteridade, mas de reivindicar no lugar contíguo — reiteradamente considerado hermético e inalterável e no qual se parecem esgotar as alternativas — um senso de estranhamento e um questionar das isometrias — das histórias, memórias, espaços, personagens, temporalidades —, trazendo variáveis e devolvendo perspetivas ao que foi impossibilitado.


Na minha pesquisa, dar centralidade ao que é próximo — o território específico e seus espaços e materialidades memoriais — não significa ter uma atenção reclusa às problemáticas locais e regionais. Implica, isso sim, reconhecer que, para tornar plausível a crítica ao poder, seus aparatos e modos como se relaciona com a escritura da história algodoeira, é necessário colidir desde logo com aquilo que nos é mais imediato — o território e o modo como ele se compatibiliza com uma certa identidade partilhada, no limite, por nós mesmos. É desta colisão desmanteladora e iniciática, da instauração de uma crise identitária, que se torna efetiva qualquer crítica e aspiração a pensar fora de si.

 

A caminhada é, deste modo, um movimento liminar de transformação do familiar no estranho, de conversão do território numa superfície comunicante e interpretável. É um modo narrativo (Solnit 2014; Jacques 2012) — toda a caminhada é uma narrativa simbólica do tempo e do espaço — de organização e (re)atribuição de sentido aos acontecimentos de um caminho e às suas coisas, lugares e personagens. Como refere Michel de Certeau no livro A Invenção do Cotidiano (1998), é um relato feito de bricolagens de “resíduos ou detritos do mundo”. Nas palavras do autor:

 

As relíquias verbais de que se compõe o relato, ligadas a histórias perdidas e a gestos opacos, são justapostas numa colagem em que suas relações não são pensadas e formam, por esse fato, um conjunto simbólico. Elas se articulam por lacunas. Produzem portanto, no espaço estruturado do texto, antitextos, efeitos de dissimulação e de fuga, possibilidades de passagem a outras paisagens ... (1998: 188)

 

Ao invés do cenário estático, o Vale do Ave reapareceu, na minha investigação, como um território compósito e complexo a partir do qual vejo emergir um texto — uma tessitura de indícios — redigido e em redação constante que imprime e apaga, de forma dinâmica, mutável e plástica, as palavras e letras correspondentes à memória.

 

O caminhante “costura” a partir destas referências textuais outras histórias, “extrai fragmentos dos enunciados para atualizá-los em segredo” (Certeau 1998: 178), introduzindo sequências e relações inusitadas entre escalas, lugares e corpos.

 

Quando imagina dobras na topografia/texto/tecido, o caminhante põe em contacto diferentes geografias, diferentes narrativas, diferentes relações formais, imagéticas e poéticas.

 

Para esta pesquisa em particular, a caminhada efetivou-se como um dos modos de predicar a angústia paradoxal provocada pelas ausências de determinadas imagens associadas ao itinerário algodoeiro, permitindo inventar outras abordagens ao território e à história e experimentar, ao mesmo tempo, encontros inusitados com diferentes materialidades, servindo elas de gatilhos para refletir acerca dos usos, dos proveitos e das transformações materiais do algodão, e a respeito do extrativismo, da industrialização, do avanço técnico, da ecologia, dos movimentos operários regionais, nacionais e internacionais, das crises, interrupções e ressurgimentos da indústria.

Video descrição: Vídeo em cores, com som de máquina de costura, mostrando um mapa do complexo fabril. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1912825 Almeida, Ludgero (Diretor). (2022). 'MapaHistória'.

Pele

Através da sua toponímia, o rio Pele, um afluente do rio Ave, descreve bem esta noção de território enquanto texto: o rio é pele, superfície tátil onde se escrevem, como numa tatuagem esburacada no solo, as linearidades dos fluxos e os sedimentos acumulados. Nas suas margens são percetíveis os sinais da fricção constante da água rebarbando os seus contornos e arredondando pedras, quebrando galhos, embebendo a terra. Estas evidências imiscuem-se nas de um mundo industrial — a poluição, as colorações sintéticas, os cheiros nauseabundos, a presença de lixo.

Anexo 1 “Caminhar”

Esta condição de familiaridade deve-se ao facto de ter nascido e viver atualmente na região, e de ter um histórico familiar associado à indústria têxtil. Uma parte significativa da minha família, desde os meus tetravós, pertenceu e pertence a secções do operariado, tem ligação às confeções — algumas em domicílio —, ou associações indiretas aos ambientes fabris. Assim, parte das minhas vivências e memórias estão profundamente relacionadas com o universo da produção têxtil algodoeira.

Anexo 2 “Caminhar”

Não é raro falar-se de uma escrita que faz uso de metáforas e movimentos espaciais — o território de pesquisa, as direções da investigação, as aproximações e distâncias em relação ao objeto de estudo, a escrita e a leitura como provocando uma viagem, uma incursão, uma estrada para algo.


Assim, o texto constitui-se de uma topografia feita de relevos, preponderâncias, elementos de uma paisagem narrativa na qual escritor e leitor se colocam em trânsito. Interessa-me também explorar a metáfora inversa — o território como texto, como textura, ou como tessitura.

Respigar

No decorrer das minhas deambulações pelo Vale do Ave executo um “respigo”, uma coleta de materiais, imagens e documentos heterogéneos encontrados dentro e fora das fábricas. Esta ação de respigar surge nesta investigação como forma de articular ferramentas, ideias, sensações, entendimentos e carnalidades que colocam a imagem e o objeto descartado e disfuncional na centralidade de um debate estético e político para o qual a arte, de modo geral, tem o seu próprio contributo.


Este gesto aproxima-se ao feito pelo trapeiro — le chiffonnier —, figura característica das cidades e das “passagens” parisienses, evocado por Charles Baudelaire no poema “Le vin des chiffonniers” (1996: 269) e trabalhado por Walter Benjamin em alguns dos muitos fragmentos inacabados do livro Passagens de Paris (2009), para descrever o método alegórico baudelairiano e sua atenção aos objetos, ambientes e atores da industrialização urbana (Assmann 2021: 411-418).


O trapeiro, (re)aproveitador e (re)significador das materialidades inutilizadas e obsoletas da cidade, dos detritos de uma natureza nova – uma natureza tecnológica –, parece ainda indicar, no contexto da obra de Walter Benjamin, a metáfora de um modo particular de proceder, através da (re)utilização e da composição dos despojos históricos e civilizacionais, a inscrição de uma história a contrapelo (2017) com potencial emancipatório, que introduz o sintoma e a espectralidade mas também as elaborações de um presente sempre ativo como paradigma.


Um cone de linha de algodão coberto pelo musgo ou um conjunto de fios de algodão dispersos que, ao longo do tempo, passaram a confundir-se com as raízes de uma planta, com os fungos e com a vida microscópica que aí passou a viver, são alguns exemplos dos achados respigados por mim.


No contexto desta pesquisa, eles revelam a transitoriedade funcional e a transformação formal dos objetos e da matéria, os estágios de um devir feito de transitoriedades — subtrativas, acumulativas, erosivas, modificadas pela técnica ou pela própria natureza. Através deles foi e é para mim possível pensar sobre as “vidas sociais das coisas” e redigir “biografias” tal como aponta Arjun Appadurai (2008).

 

Além disso, estes achados materiais operam como índices que ecoam e inscrevem determinados passados ou acontecimentos. Porém, o índice — o objeto ou a imagem respigada — não é, nesta investigação, somente o fator de um cálculo de uma inferência semiótica com conclusão estanque e puramente decifrável. Estes índices não correspondem a factos ou provas movidas intactas do passado para o presente, mas incorporam, como uma das características fundamentais, a opacidade do que nunca se deixa compreender e apreender na totalidade. Mais do que nostalgias congeladas, as materialidades aqui em causa são testemunhos vivos da própria erosão do acontecimento passado, transformaram-se num húmus produzido por um tempo sempre implacável. Elas são o resultado presente dos fluxos temporais e dos contactos sistemáticos que tiveram com outras matérias e outras vidas. Os seus significados são por isso múltiplos, dinâmicos e arborescentes, estão sempre poluídos.

 

Este substrato, feito pela matéria em constante desintegração e (re)composição, tem ajudado a criar condições para o crescimento das minhas ideias, práticas, saberes e fazeres artísticos e na (re)elaboração dos modos como digo, escrevo e penso a memória.

Video descrição: Vídeo em cores, sem som, mostrando a imagem do carretel de linha de algodão coberto com musgo girando. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-2056203 Almeida, Ludgero (Diretor). (2023). 'Conemusgo'.

Anexo 1 “Respigar”

O respigo, ação de coleta e reaproveitamento dos restos deixados nos campos após uma colheita, é representado por Jean-François Millet no quadro “As respigadoras” (1857) alocado no Museu de Orsay em Paris e também no filme "Les glaneurs et la glaneuse” (2000) de Agnés Varda.Neste último, a cineasta identifica diferentes modos de perpetuação e atualização deste gesto na contemporaneidade, nomeadamente no seu próprio trabalho de captação de imagens. (Les glaneurs et la glaneuse 2000).

Video descrição: Vídeo em cores, sem som,  mostrando mãos com luvas remexendo material descartado. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-2055642 Almeida, Ludgero (Diretor). (2023). 'Aparecimento'.

Anexo 2 “Respigar”

O trapeiro é a figura mais provocadora da miséria humana. Lumpemproletário num duplo sentido: vestindo trapos e ocupando-se de trapos. “Eis um homem encarregado de recolher o lixo de cada dia da capital. Tudo o que a cidade grande rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que desdenhou, tudo o que ela destruiu, ele cataloga e coleciona. Ele consulta os arquivos da orgia, o cafarnaum dos detritos. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; recolhe, como um avaro um tesouro, as imundícies que, ruminadas pela divindade da Indústria, tornar-se-ão objetos de utilidade ou de prazer.” (Benjamin 2009: 395)

Video descrição: Vídeo em cores, com som de vozes do artista e dos companheiros de respigo, mostrando carretéis de linha onde plantas se instalaram e crescem como que num vaso. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1911822 Registo de Cangosteira.

'Coisas' como agentes

Sobre as noções de agência e agência social, vale a pena ressaltar o trabalho de Alfred Gell no livro Arte e Agência (2018), no qual o autor delineia um conceito de agência a partir da noção de que as coisas — os objetos, os artefactos e a arte (entendida de modo abrangente) — são detentoras de uma agência própria, distinta de uma agência primária atribuída às realizações que “dão início a acontecimentos por meio de atos de vontade”, mas que é certamente secundária, na medida em que as coisas são “formas artefactuais” investidas de intencionalidades, são “realizações objetivas do poder ou capacidade de [provocar o desejo do seu] próprio uso...” (2018: 52).


Nesta perspetiva, pode dizer-se que os sentidos atribuídos aos objetos respigados não dependem exclusivamente do modo como os olhamos, como se essas materialidades fossem passivas perante a dominação dos significados, apropriações e ordenações que lhes impomos, mas de uma relação dependente, mútua, persistente e reversível entre o sujeito que interpela e o objeto interpelado ou entre um sujeito interpelado pelo objeto interpelante.


Desta forma, desmantela-se a conceção de que é o sujeito, e somente ele, a atribuir um sentido ao real, em prol da noção de que as coisas também nos devolvem de certo modo o seu olhar e as suas proposições, sendo determinantes para o que vemos, como vemos e como ativamos e somos ativados.

Objeto descrição: Negativo da imagem do carretel de linha de algodão coberto com musgo. Clique aqui para ver o objeto: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1772592 Objeto I.

Potenciar outras histórias

O livro Potential History: Unlearning Imperialism (2019), de Ariella Azoulay, parte do questionamento e recusa da identidade israelita da autora para aprofundar o lugar do arquivo e da imagem na construção da história. Ele fornece à minha investigação uma importante base teórica, disponibilizando ferramentas críticas e conceptuais que auxiliam no reconhecimento das operações perpetradas no processo de arquivamento, das indivisibilidades entre essas operações e o poder instituído, das espoliações e das violências materializadas na imagem fotográfica e no conjunto das documentações que o arquivo salvaguarda.


Particularmente, o conceito de “história potencial”, central e transversal ao livro, reivindica a necessidade da desmontagem do arquivo a partir de uma rejeição, ou como a autora refere, de uma desaprendizagem das suas taxonomias e ontologias imperiais, coloniais e raciais.


Potential history is a form of being with others, both living and dead, across time, against the separation of the past from the present, colonized peoples from their worlds and possessions, and history from politics. In the space wherein violence ought to be reversed, different options that were once eliminated are reactivated as a way of slowing the imperial movement of progress. Potential history questions the inherent universal value of archival records that supersedes local litigation about the mode of their acquisition and rejects endorsing the archive´s mission of sanctioning people´s actions as now records of past achievements that cannot be rewound. [...] Potential history is not the account of radical thinking, of explicit ideological struggles against imperialism, but a rejection of imperialism´s conceptual apparatus altogether. The imperial apparatus presumes that such struggles exist only in the past, only as dusty records in the archive. [...] Rehearsing disengagement is the practice of doing potential history. (2019: 43)

Video descrição: Vídeo branco e preto, com som estridente, a partir de imagens fixas nebulosas de arquivos históricos da fábrica de tear algodão. Mulher sentada ao tear. Homens uniformizados gerenciando as máquinas mais pesadas. Sala de controle das máquinas. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1912931 Almeida, Ludgero (Diretor). (2022). 'MapaHistória'.

Um texto unidirecional

Quando falamos da história da indústria têxtil algodoeira do Vale do Ave e da sua gravação textual no território, o caráter sintomático, plástico e diverso que caracteriza toda a memória parece suspender-se diante do entendimento estanque do passado que faz persistir a imagem única e glorificante do desenvolvimentismo industrial e do sentido histórico específico e incontornável de progresso, de civilização, de nação, de identidade.


Este texto historiográfico plasmado no teor das representações honoríficas — nos símbolos e estatuetas que se impõem como letras a negrito no espaço público e privado, nos locais considerados centrais para uma política de cidade baseada no identitarismo — é expressão de uma construção fictícia de um passado que se apresenta deliberadamente como via unidirecional.


É um texto separado, com forma própria, que diferencia o que deve ou não ser digno de representação, de permanência e estabilidade, de memória. É a concretização do poder instituinte da lembrança que polui os imaginários pessoais e coletivos com uma gramatologia de imagens e narrativas, um panteão de eventos exemplares e personagens históricas arquetípicas que revelam os sucessos, os valores e moralidades de determinadas vidas magnânimas.

Video descrição: Vídeo curto em cores, sem som, mostrando o artista de costas para a câmera cobrindo com argila a cabeça da escultura de um patriarca em espaço público para a realização do molde da face. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1868954 Almeida, Ludgero (2022). Processo de tiragem de molde a um dos bustos do Vale do Ave.

Bustos

Os bustos dos industriais presentificam-se no espaço público. São rostos excessivamente familiares para nós. Vultos encenados e reencenados durante décadas, desde os primórdios do industrialismo no Vale do Ave e com maior insistência no decorrer do Salazarismo, integrados dentro do aparato propagandístico fascista. São aparecimentos fantasmagóricos que emergem nas praças próximas das indústrias, nas rotundas de acesso a cidades e vilas, dispostos ligeiramente acima de uma altura humana, depositando os seus olhos vidrados e paralisantes sobre os nossos.


Ostentados pelo poder de estado e por organizações privadas, estes bustos foram e são uma das corporificações possíveis do imaginário industrial que, enquanto abona e difunde invariavelmente a figura do empresário bem-sucedido, meritório e beneficente, relativiza os crimes, as violências e as destruições do regime e do sistema exploratório que o sustenta. Esta imagem de ascensão social do homem que, nascido na pobreza e à custa braçal, devido ao “exemplo de trabalho honesto e inteligente”, ao “esforço dedicado” e ao “brilhantismo” atingiu “esplêndido êxito” (Bastos, 1950) e trouxe esperança e bonança ao miserabilismo, chegou à atualidade como facto consumado e indubitável. É-nos apresentada como regra.

Pedras e Máscaras

A obra Pedras Enquanto Máscaras (2022) consiste num conjunto de peças escavadas na grafite que representam os rostos em negativo de várias personalidades industriais e outras figuras da região do Vale do Ave. Estas iconografias do poder existentes por todo o território, representações do privilégio e do posicionamento social das classes proeminentes, são assumidas e inquestionadas pela identidade regional e nacional ao ponto de serem (re)valorizadas e repostas, exercendo deslumbramento no imaginário coletivo.


Ao inverter a imagem sacralizada escavando a grafite — uma matéria natural existente nesta região e que remete para a ideia de escrita e, portanto, para um dos conceitos mobilizadores da pesquisa, o território como texto — apresenta-se uma ambivalência: as faces representadas parecem, consoante o movimento do espectador no espaço expositivo e a orientação da luz ou da sombra, salientarem-se e moverem-se, causando uma sensação de estranhamento. Exercem um papel duplo: quando vemos os positivos, ausentam-se os negativos, e vice-versa.


Embora o título o sugira, estas peças não são máscaras. Ainda assim, é possível imaginar que elas possam representar a alternância entre o lado positivo de uma máscara — aqui apenas virtual, que se avoluma para fora como superfície pública, o rosto visível do culto — e uma faceta omissa — mais concreta porque é palpável, que corresponde à sua superfície interna.


Não são representações duráveis que perpetuam a efígie, mas antíteses dos monumentos: a grafite demarca o rosto, mas fá-lo num estado de instabilidade e fragilidade — há sempre a apreensão latente de que as pedras suspensas caiam devido ao seu peso descomunal e se quebrem, fraturando-se em centenas de pedaços incombináveis.

Video descrição: Dois vídeos em branco e preto, sem som, sobrepostos, onde as máscaras em argila dependuradas por um fio ao girarem tornam indistintas as faces em  côncavo e convexo. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1881707 Almeida, Ludgero (2022). 'Pedra enquanto máscara'.

Memórias e Vestígios

No seu livro Espaços da Recordação: Formas e Transformações da Memória Cultural (2021), Aleida Assman inclui um trecho de A Fisiologia da Alma, de Karl Spamer, que aponta para a relação entre memória e vestígio:


[...] falar de uma memória de toda a matéria orgânica, sim, da matéria em geral, no sentido em que determinadas ações efetivas deixem nela vestígios mais ou menos duradouros. Mesmo a pedra conserva em si o vestígio do martelo que a atingiu. (Spamer cit. in Assmann 2021: 227)


O vestígio ou a demarcação de um rastro não significa, porém, que se possa através dele promover à descrição irrefutável de um contacto, de uma fricção, de um movimento ou de um acontecimento. Esse instante em que as coisas se comunicam, em que as coisas se tocam, nunca pode ser reativado plenamente no presente, a não ser como impressão fragmentária e
temporária sobre a matéria, sempre suscetível ao desgaste e à conglomeração com outras matérias e com a sua envolvência.


No seguimento disso, as materialidades encontradas por mim e muito daquilo que elas preservam momentaneamente como vestígios servem, nesta investigação, como elementos sugestivos, disponíveis à (re)escritura e à ficção e não como dados que podem servir à verdade do dizer da história.

Video descrição: Vídeo em branco e preto, sem som, usando imagens fixas em negativo dos registros de um incêncio ocorrido na fábrica. As imagens mostram a estrutura da fábrica, teares e matéria prima do algodão como um aglomerado amorfo. As imagens são mostradas com deslocamento na vertical com a câmera subindo da base ao topo. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-2055660 Almeida, Ludgero (Diretor). (2023). 'Algodão'.

Respigar Arquivos

A incisão proposta pelas imagens fotográficas e outras documentações salvaguardadas nos arquivos públicos da região do Vale do Ave e nos arquivos nacionais que se referem ao tema — ou inclusivamente nos arquivos de teor privado associados direta ou indiretamente ao itinerário algodoeiro — chegam ao presente como nostalgias do império e da nação, do progresso e de civilização.


São imagens de devoção. A fotografia inventa e consubstancia um enquadramento privilegiado que exibe os cenários onde se movem e performam as personagens da alta sociedade. O empresário, o representante da igreja e o político desempenham nelas papéis distintos, mas aparentemente consensuais, da história nacional e regional. As cenas repetem-se: uma marcha com a presença ilustre de algum convidado, a inauguração de uma fábrica, apertos de mão, uma conferência seguida de um jantar, um evento filantrópico.

 

Não somos convidados para estas imagens, elas mostram-nos um lugar de exclusividade e de celebração. As mulheres aparecem por acaso nos limites da cena, os/as operários/as fabris surgem como exemplo do/a trabalhador/a exemplar operando a nova maquinaria. Nas imagens coloniais, os/as cultivadores/as do campo algodoeiro emergem como figuras passivas, elementos de uma paisagem exótica — um tipo de bela Arcádia. As greves, a violência no trabalho, as contestações, as desigualdades, a destruição ambiental, nada disso atrasa o movimento voraz e acelerado do progresso plasmado nestas imagens. A relação intrincada entre o crescimento económico para as elites e a colonização dos corpos e dos desejos ao longo de um trajeto de milhares de quilómetros (Domingos 2020) — desde os campos algodoeiros de Angola e Moçambique, passando pelas fábricas 

do Vale do Ave, onde se estabeleceu um processo exploratório e disciplinar amparado pelos baixos salários, pelo labor infantil e pelos abusos físicos e mentais — foi tornada omissa pelo aparato da propaganda e pela imagem proposta pelo sujeito que Ariella Azoulay chama de “imperial shutter”, ou seja, aquele que “materializa [a] tecnologia imperial” (Azoulay 2019: 7).


As imagens de arquivo evidenciam por um lado aquilo que foi o futuro ilusório — a concretização dos valores e dos anseios incentivados pelo fortalecimento da industrialização, pelo fascismo e pelo capitalismo —, por outro, sinalizam as continuidades e reverberações de algumas das ideias, discursos, práticas, mentalidades e imaginários no presente. Cravam-se nos sujeitos, naturalizam-se nos gestos, reaparecem nas políticas, no trabalho e na cultura, nos modos de pensar e sistematizar o conhecimento sobre a região e a sua realidade fabril. Daí a importância de retomar o arquivo enquanto espaço fundamental no entendimento das imbricações que formularam o cenário histórico, político, social, educacional, económico, ético e artístico da atualidade.

 

Ora, tal não pode ser feito senão através de uma desmontagem do arquivo: do reconhecimento da sua implicação com o poder — o de ontem e o de hoje —, com a seleção, organização, conservação e discriminação do real, com a formação do discurso, da história, dos supostos factos e verdades; da dessacralização da sua autoridade enquanto espaço de recordação e monumento do passado veiculado à formação das identidades; da interrogação da sua suposta consistência ontológica e positividade; do entendimento do arquivo como algo que é dependente das descontinuidades, lacunas e imperfeições; da reelaboração da sua função de simples depósito de um passado aparentemente morto, hermético e silenciado; da intervenção crítica sobre as imagens e documentos a partir da adoção das ferramentas conceptuais, formais e poéticas que a atualidade permite (Azoulay 2019; Derrida 2001; Farge 2017; Mbembe 2002; Stoler 2002).

 

Contudo, “fazer arquivo” nos dias de hoje não significa apenas sistematizar novas configurações e modelos de arquivamento, utilizar diferentes media, gerar outros espaços de preservação informacional. Se é certo que as novas tecnologias incentivaram o desejo da memória completa, através da desmaterialização e virtualização dos dados, permitindo acumular e extrair impulsivamente do real toda a qualidade e quantidade de recursos, é imprescindível ter a consciência dos limites das pesquisas no que concerne a construir, reconstruir e fazer justiça à memória dos condenados da história.


A minha pesquisa e prática procura outro lugar no interior da produção artística que não o da denúncia explícita, da mensagem clarividente, do descortinar de uma “verdade verdadeira” provendo os factos, os relatos ou as personagens subalternizadas de uma história industrial, regional, nacional e transnacional.

 

Pelo contrário, se no decorrer do meu processo de trabalho se vão formulando múltiplos arquivos, pinturas, instalações, vídeos e textos, eles debruçam-se sobre as problemáticas da história algodoeira e, em particular, sobre o arquivo na perspetiva da arte e sua incomunicabilidade. Quer isto dizer que a obra artística faz uso destas imagens e documentos de arquivo reivindicando lógicas, olhares, processos intuitivos que, mais do que dar a ver — a pobreza, a miséria, o subalterno, o que não tem lugar na escrita da história —, propõe centrar-se, conceptual e formalmente, nas ambiguidades entre as transparências e opacidades da imagem, entre as falas e os 

silêncios, aceitando as impossibilidades de reinscrever as ausências como algo do campo do visível — a não ser de maneira fabulada, não imediata, espectral.

Fazer Negativos

Quanto mais percetíveis as condições de concretização e permanência do que foi tornado visível pela história — as estruturas de saber e poder e as operações pelas quais captura, organiza e fabrica o seu conhecimento —, mais nos deparámos com as implicações instrumentais da história na definição de uma ou várias ordens coloniais, raciais, económicas e políticas, e de diferentes regimes de verdade que compeliram e compelem à segregação e submissão de determinadas vozes incompatibilizadas. 


Apercebemo-nos assim da necessidade de trazer a aparente transparência da história como problemática evitando a resplandecência da sua luz. Como desmantelar os limites do que é dito e reenquadrar os espaços e objetos de materialização da história e da memória com as perguntas que lhes lançamos? E qual a potência destas perguntas para a transformação do arquivo e da imagem, como apela Ann Laura Stoler (2002), elevando-os de meros objetos cristalizados em processos a objetos com uma vida que é, por um lado, mapeável e, por outro, passível de ser continuada fora dos percursos habituais — permitindo-lhes outras passagens e variações? No fundo, como criar brechas e respiros na unidirecionalidade, homogeneidade e uniformidade da história?

 

Neste trabalho, sirvo-me, entre outros conceitos, da noção de “negativos históricos” de Ann Laura Stoler (2009), no sentido de imaginar possibilidades de inserção nas texturas da superfície onde a luz da história produz e projeta as suas imagens e a sua legibilidade. 


Este conceito é formulado sucintamente pela autora no livro Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense (2009), nomeadamente no capítulo quatro, “Developing Historical Negatives”. Neste capítulo, a antropóloga dá continuidade ao seu questionamento das naturezas coloniais e raciais dos arquivos do império holandês do século XIX. Para ela, desenvolver negativos históricos implica desordenar a ordem colonial através da qual o arquivo e a imagem fotográfica são corporificados, redirecionando o olhar analítico.

 

from the high-gloss print of history writ-large to the space of its production, the darkroom negative: from direct to refracted light, from “figure” and “field” — that which is more often in historic relief — to the inverse, grainy texture of “surfaces” and their shifting “grounds.” (2009: 108)

 

A diminuição da intensidade lumínica da história e sua conversão em feixes de luz refletidos e refratados — dado que podemos tirar vantagens das alterações na velocidade de propagação desta luz e dos seus eventuais deslocamentos direcionais, ou seja, de abrandamentos, de olhares demorados e do estudo de objetos e sentidos menos orientados pelo que a história, o arquivo, a imagem e o documento nos entregam como óbvio e garantido — pode criar contrastes, jogos de luz e sombra, que tornam progressivamente explícitas as matizes, volumes e depressões, as diferentes dobras e espessuras das linhas e tramas da história.


São entrelaçamentos mais pressentidos do que tangíveis que, impelindo ao toque, não podem ser tocados verdadeiramente, mas talvez possam ser transpassados como uma mão tocando fios vaporosos e imateriais mas extremamente opacos.

 

Entre as linhas apresentam-se-nos acessos, funduras sem fundo que não se encontram esvaziadas, mas excessivamente ocupadas pelos espaços dissensuais e em negativo da história, daquilo que na história transgride a classificação, os sentidos e as visões por detrás do dizer historiográfico que, sendo dito, carrega em si algo de indizível, silenciado, ou mesmo feito irrepresentável.


Se a luz direta da história tende a consumir e confinar com a sua irradiação tudo o que consegue abarcar — conforma a memória, dá limites estritos aos documentos transformando-os em provas inequívocas, retoca e pormenoriza o relato, anima e colora artificialmente a imagem e o registo na busca da pureza da cena histórica —, o negativo da história é preenchido com formas evasivas, frágeis e degenerantes que requerem persecuções insistentes enquanto nos escapam sempre e irremediavelmente.


Seguir o rastro das imagens em negativo da história é agir no interstício da visibilidade e invisibilidade, na oscilação da presença e ausência, precisamente aí, onde a trama ganha volatilidade, onde se redimensionam as quantidades de luz e sombra. É aceitar o gesto incompleto, mas necessário, que lida sempre com a incognoscibilidade, a transitoriedade e a perda constante do acontecimento e das suas fragmentações.


Estas formas em negativo são formas potenciais que carregam em si os sonhos desejados, mas interrompidos, que vibram e agitam o suporte tecidual. Elas podem reivindicar espaços e formas produtivas e auxiliar-nos na invenção de presentes e futuros alternativos.

Video descrição: Vídeo curto branco e preto, sem som, mostrando radiografia do pulmão com cintilações intermitentes. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1772590 Almeida, Ludgero (Diretor). (2022). 'MapaHistória'.

MapaHistória

O filme-ensaio MapaHistória (2022) parte da tentativa de aproximação de um gesto, lançado do presente, de compreensão dos mecanismos de operação da escrita da história algodoeira, dos modos como ela se instaurou no imaginário e na cultura, fazendo-se reverberar na atualidade.


É construído em torno do diálogo com diversas materialidades encontradas no Vale do Ave, nomeadamente vários projetos e mapas do território que ajudam a elaborar o conceito de “MapaHistória”, a partir do qual se problematizam as afinidades entre os princípios governativos e administrativos aplicados na interpretação do espaço e os gestos seletores e organizacionais usados na leitura do tempo — de uma realidade histórica.


Enquanto a feitura do mapa elege, situa e elenca determinados locais usando um olho aéreo, totalizador e abstrato usando linhas, pontos e manchas para inscrever os seus enunciados, a história escolhe os eventos que considera fundacionais e originários, localiza-os temporalmente, atribuindo-lhes coerências através dos seus processos e gramáticas.


A história é uma superfície mitificadora, um mapa e um tecido que encobre e determina o visível, que manipula os aspetos da verdade que devem persistir ao tempo. Nela, as personagens notáveis são fetichizadas como ícones, as suas ações beneméritas celebradas por um aparato de memoriais formados por monumentos, bustos e arquivos, enquanto as entoações fascistas e colonialistas por detrás das suas motivações e atos são relativizadas e omitidas.


A história exerce a função definidora dos limites do discurso, do que deve constituir-se como significante e inteligível, impondo sobre as subjetividades um imaginário específico que recusa e ofusca incessantemente a existência de outros corpos. A história recusa um campo de possibilidades imaginativas e utópicas, mas também as violências que figuraram e figuram nos seus avessos.


O itinerário algodoeiro, desde o extrativismo do algodão à circulação pelo Vale do Ave, é um trajeto de abusos que nem sempre são representados nesta superfície que é a história da indústria. Quando é representada, a violência surge como inevitabilidade inimputável e extemporânea, condição de um passado e tempo que “já não é o nosso”.


Neste filme, interpela-se esta história monolítica e unidirecional como forma de compreender as suas exclusões e reclamar por uma pergunta que atravessa toda a investigação: de que forma é possível conceber a imagem da ausência, criar narrativas, mapas e histórias alternativas respeitando os silêncios daquilo que se encontra omisso pela luz ofuscante da história?

Afasias e Fabulações

No artigo de Saidiya Hartman designado de Vênus em dois atos (2020) a autora coloca-nos perante a figura da Vénus Negra — representação das muitas mulheres escravizadas — que figura evasivamente no seu “encontro com o poder” dos arquivos, num “esboço insuficiente de sua existência” (Foucault 2003, cit. in Hartman 2020: 14).


Procurar conhecer a história da Vénus, tal como referido por Saidiya Hartman, é lidar com a impossibilidade da sua presença, com o seu caráter indizível, com a sua impermanência e com a contínua violência fixada no seu corpo pelas palavras e descrições do arquivo. Desta forma, a “fabulação crítica”, conceito elaborado neste texto, visaria rearranjar e deslocar os recursos narrativos da história, no sentido de compor uma narrativa recombinante que “enlaça os fios de relatos incomensuráveis e que tece presente, passado e futuro, recontando a história [...]” (2020: 29).


Este lugar de (re)escritura é, no entanto, um lugar de ambiguidades: um espaço entre a necessidade de utilizar o arquivo para falar de, e a rejeição desse mesmo arquivo; a tentativa de corporificar o ausente usando palavras, narrativas e imagens, e a impossibilidade de estabilização desse corpo que sempre nos escapa.

Corpos

A obra Do Corpo Construído ao Corpo Destituído (2022) consiste num conjunto de doze peças em resina suspensas à altura do olhar e iluminadas por caixas de luz. As peças foram produzidas a partir de um molde da última camisa de trabalho de um operário da Fábrica Fiatece.


Esta camisa, feita pelo próprio trabalhador e sua esposa usando o tecido produzido na fábrica, segue o modelo padrão de confeção. Ela participa no processo da sua subjetivação — a conversão em operário, funcionário técnico e especializado. Ao vesti-la emula a identidade de um ator utilitário inserido na competição produtiva da industrialização, participante do projeto de progresso e civilização. A camisa foi, por isso, objeto de identificação e, quando foi inutilizada, reativou uma reencenação quase ritualística — é olhando-a e tocando-a, de tempos a tempos, sem nunca a vestir, que ele acede novamente à recordação e à experiência somática do seu uso.


Assim, tornou-se objeto do traumático: se por um lado é veículo para predicar e suturar a falta quando resgata temporariamente a sua identidade interrompida — a camisa preenche um vazio —, por outro, ela já não pode ser vestida integralmente. No instante em que fosse vestida, desintegrar-se-ia, desnudando e desmoronando inevitavelmente a sua identidade irrecuperável: a fábrica faliu, a camisa foi deposta, o futuro era ilusório.


Esta obra produz o positivo de um negativo da camisa. Não é possível falar claramente de uma imagem-reversa, mas ela é latente. O molde utilizado para executar as diferentes peças encobriu e enformou a superfície da camisa, as suas rugosidades, texturas e dobras, criou uma exterioridade que depois se inverte novamente quando sobre ela é derramada a resina.


Assim, o que se encontra suspenso na penumbra — na noite ou na sombra do sonho operário — são réplicas inexatas e deformadas da primeira camisa, são positivos luminescentes que se deixam penetrar pelo olhar radiográfico, como se fosse possível ver através delas como através de um corpo. Esta sensação de atravessamento cria a ilusão do negativo e é esta ambiguidade entre interior/exterior, entre transparência/opacidade que me interessa explorar.


A repetição da forma original da camisa é apenas aparente: a manualidade do processo que concretiza estas peças produz, invariavelmente, obras distintas, com diferentes luminosidades, contrastes, texturas e dobras. Ao mesmo tempo, se a matéria resinosa utilizada é associada simbolicamente a uma ideia de preservação — podemos pensar, por exemplo, nos animais pré-históricos fossilizados em âmbar —, ela é igualmente frágil, quebradiça, instável, derrete quando atinge uma temperatura específica, é perene e encontra-se numa condição momentânea.


Neste sentido, esta pequena multidão de corpos flutuantes não é apenas um monumento homenageador, mas também um meio provisório de ocupar o espaço que o impronunciável deixou vazio.

Video descrição: Vídeo em cores com som dramático repetitivo de violoncelo e dos teares em funcionamento, mostrando fundo escuro com as camisas fabricadas em tons ferruginosos que se deslocam lentamente na tela. Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.researchcatalogue.net/view/1618871/1618872#tool-1783732 Almeida, Ludgero (2022). 'Do corpo construído ao corpo destítuido'.

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