INTRODUÇÃO
Embora a prática de observação pelo microscópio seja mais comum nas rotinas do estudo e da investigação científica, ela reflete um compromisso partilhado com a prática e a investigação artística: a descoberta de novo mundos visíveis. É com esta expressão – descobrir um novo mundo visível – que o cientista Robert Hooke abriu o seu ensaio Micrographia, publicado originalmente em 1665, onde apresenta a microscopia como uma nova forma de cultura visual. Consciente de que duas pessoas a observar a mesma amostra podem ver coisas diferentes, as notas de Hooke constituem ainda hoje uma base epistemológica para a representação microscópica: observar ao microscópio envolve tomar decisões visuais que alteram o que é observado e abrem caminho ao conhecimento da “verdadeira forma”. A conexão de Robert Hooke com as artes, e em particular com o desenho, está na origem desta nova cultura visual na imagem científica (Doherty, 2012).
Acompanhando a evolução tecnológica ligada à microscopia, o desenho é o resultado de um longo período de observação, durante o qual ocorrem diferentes profundidas de foco e diferentes ampliações.
Mais do que um registo objetivo, desenhar ao microscópio começa por ser uma postura epistémica sobre a própria observação. Desenhar é criar um modelo visual externo, usado para aprender e fazer ciência (Quillin & Thomas, 2015, p.9). Este modelo visual relaciona o objeto com a experiência da observação. Como qualquer representação, ele não é neutro. É informado pelo conhecimento adquirido do espécime que está a ser observado e pelas representações prévias que os cientistas e artistas transportam para exercício da observação: nós desenhamos os desenhos que já vimos. A micrografia não só torna visível a realidade que o olhar desarmado não consegue discernir. Temos de reconhecer nela uma instância do estilo de um período e dos seus quadros conceptuais (Bredekamp, Dünkel & Schneider, 2015, p.1).
Enquadrado num workshop introdutório de desenho ao microscópio para estudantes de Artes Plásticas e Bioquímica da Universidade do Porto, esta exposição propõe-se discutir e apresentar os resultados da aplicação do método de desenho histológico desenvolvido pelo cientista Abel Salazar (1889-1946) como ferramenta de observação e polarização da atenção; repensar o seu estatuto como documentação científica e o seu envolvimento no processo de aprendizagem.
O MÉTODO DE DESENHO HISTOLÓGICO DE ABEL SALAZAR
Abel Salazar, como ocorre com vários cientistas, pensa com e através dos seus desenhos. A capacidade de oscilar entre modelos verbais e modelos visuais para tornar inteligível o pensamento está também ligada à sua profunda conexão com as artes. Em Abel Salazar, o desenho era a lingua franca partilhada pelas duas culturas: a ciência e a arte. Era, sobretudo, o que conferia unidade ao seu pensamento.
A sistematização dos seus métodos de desenho ao microscópio encontra-se em duas publicações: na separata “Procédé Rapide de Dessin Microscopique”, da Folia Anatomica Universitatis Conimbrigensis de 1932; e no capítulo “Desenho Histológico” publicado em 1943 no Manual de Técnica Histológica. Se o primeiro texto foi escrito como um apoio técnico para resolver uma necessidade laboratorial de forma rápida, acessível e cómoda, o segundo assume uma postura epistémica perante o desenho, que podemos descrever como um continuum: polarizar-despolarizar a atenção.
Na introdução ao “Desenho Histológico”, Abel Salazar refere-se ao desenho na sua dupla função: como exercício de atenção e observação e como documentação científica. É sintomático, contudo, que a primeira função seja aquela que compromete o cientista/artista com o desenho: “o hábito do desenho desenvolve as faculdades de observação, ajuda a memória a reter os caracteres morfológicos e as relações topográficas e, sobretudo, é um excelente polarizador da atenção” (Salazar, 1943, p.49).
No desenho, ver e comunicar são finalidades distintas, embora alinhadas: um estudante ou cientista com mais prática de observação estará sempre mais capacitado para comunicar aquilo que observou (Quillin & Thomas, 2015, p.5). O desenho descritivo – que Abel Salazar opõe ao desenho impressivo – não é apenas o registo analítico da observação. Ele revela o entendimento que o estudante faz do que observa.
Abel Salazar, Conjunto de fotomicrografias, s.d.
Casa Museu Abel Salazar. Pasta 05390.008
DSZ - Documentos Abel Salazar
Fonte: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05390.008#!8
Marcha a seguir na execução de um desenho à pena (...). (Capilares da cápsula do rim da Cobaia, nitrados com uma injecção de líquico picro-ósmico argêntico. Obj. 6, ac.8). (Salazar, 1943, fig.16.
POLARIZAR E DESPOLARIZAR
Desenhar em baixa e alta tensão
Para Abel Salazar, a observação ao microscópio envolve uma oscilação contínua entre dois movimentos, que o desenho regista como se de uma “marcha” se tratasse: polarizar e despolarizar.
A polarização consiste em encontrar, num campo mais ou menos homogéneo, as distribuições dos principais elementos, como por exemplo os principais tecidos que compõem um órgão. Estes desenhos correspondem a uma observação de baixa tensão (low power) (OCR, 2015, p.8), em que nenhuma célula individual é geralmente desenhada. A despolarização corresponde ao movimento contrário: a perceção acolhe a diversidade de formas e matizes que compõem os principais elementos, num regime de alta tensão (high power) em que o desenho descreve cada campo na forma mais detalhada que a microscopia permitir (OCR, 2015).
O método de desenho histológico de Abel Salazar – como outros informados pelas funções oficinais que o desenho desempenhou ao longo da história da arte ocidental – começa como um processo de transcrição mediado por uma grelha. As linhas e os pontos de referência distribuídos pelo campo visual criam um sistema de coordenadas que permite o reconhecimento dos objetos pela posição que têm no campo. O processo inicia-se na materialização deste campo visual:
1. Traçar no papel um círculo de dimensões equivalentes às do campo microscópio, usando para o efeito qualquer objeto redondo. Estas dimensões não são as dimensões do diâmetro da lente, mas as dimensões percebidas da imagem vista pela lente.
2. Dividir este círculo em quadrantes, que se podem por sua vez dividir em octantes, se for necessário.
3. Mentalmente, traça-se uma subdivisão análoga no campo microscópico. Para Abel Salazar, o movimento do desenho inicia-se como uma convergência, seguida da desconvergência que orienta automaticamente a análise:
Ao lançarmos os olhos para o campo microscópico, a atenção converge imediatamente para os elementos dominantes, quer estes o sejam pelos seus caracteres morfológicos, tintoriais, topográficos ou outros. Em seguida, a atenção despolariza-se e passa gradualmente a pormenores cada vez menos dominantes, numa regressão que vai do principal ao secundário (Salazar, 1943, p.51)
Este método explora o efeito da polarização que ainda encontramos nos poucos manuais de desenho ao microscópio publicados (OCR, 2015), mas também das capacidades cognitivas com que o cérebro tira partido da topografia do papel para lidar com informação complexa (Jabr, 2013).
Recorrendo a meios simples e acessíveis como lápis de série H, HB e B, e borrachas finas e duras, a progressão do desenho segue os movimentos de polarização e despolarização da atenção:
4. Marcar a topografia, a forma geral, o tom fundamental dos elementos que primeiro nos chamam a atenção (Fig. 1, quadrante A), num regime de “baixa tensão”. Os quadrantes podem ser usados na distribuição topográfica, tomando o centro e os diâmetros como referências para a colocação e escala dos elementos. A posição destes elementos passa a servir como referência para o esboço de outros elementos próximos ou subordinados (Abel Salazar, 1943, p.51).
5. O segundo passo é ainda um efeito da polarização da atenção: marcar os valores, as diferentes intensidades de tom dos elementos dominantes e, a existir, a mancha de fundo (Fig.1, quadrante B).
6. O passo seguinte centra a atenção em cada um dos elementos desenhados. Polarizar e despolarizar tornam-se dois movimentos alternados e complementares. O olhar oscila entre o conjunto dos componentes secundários e a focalização em cada um deles, de forma a tentar um desenho mais “cerrado, mais preciso e detalhado.” Esta observação consiste em sucessivos zooms de aproximação e afastamento do objeto, já que a visão não consegue perceber todos os detalhes simultaneamente. (Fig.1, quadrante C)
7. Após um dos elementos dominantes estar concluído, Abel Salazar sugere que se proceda de forma idêntica no elemento seguinte (p. 52), e assim progressivamente até ao final, acrescentado os detalhes necessários ao grau de acabamento que se procura (Fig. 1, quadrante D).
O que identifica um elemento como dominante depende do tipo de amostra, mas também dos hábitos da visão, como reconhece Abel Salazar. Nas amostras a fresco – observação de microrganismos vivos – tendemos a polarizar os elementos mais refringentes; nas preparações coradas sobressaem os elementos mais ávidos de cores. A ampliação tem também a sua influência: “com aumentos médios ou grandes são, em geral, os núcleos que, pela refringência ou avidez cromática, chamam logo a atenção” (p. 52), devendo ser estes os primeiros a ser topograficamente marcados. Nos casos em que a preparação é homogénea, sem elementos dominantes para facilitar a colocação topográfica, os quadrantes assumem esta função, ao criar formas que enquadram os elementos subordinados.
A estes procedimentos gerais, Abel Salazar acrescenta breves notas para abordar alguns elementos histológicos particulares, como os núcleos, os citoplasmas, fibras conjuntivas e musculares. As formas da sua representação e o grau de resolução dependem da ampliação. Quanto maior a ampliação, mais se impõe uma observação em “alta tensão,” e mais minuciosa a sua execução. O que se pretende do desenho ao microscópio não é apenas nitidez, como reforça Abel Salazar. É que mostre que a preparação foi bem observada (p. 56).
Fig. 1. Abel Salazar. Marcha a seguir para representar um aspecto de conjunto de um hilo de ovário de coelho com tubos da rete-ovarii, veia, tecido adiposo, estroma conjuntivo (líquido de Bouiu, tanino-ferro, Obj. 3 oc.3), s.d. (Salazar, 1943, fig.15)
MODELOS EXTERNOS E INTERNOS
A vantagem deste método descritivo é que permite a Abel Salazar atualizar e aplicar dedutivamente o conhecimento previamente adquirido. Contudo, porque regista a sequência dos movimentos da sua própria observação, é também um desenho guiado por um pensamento indutivo, atento às singularidades de cada elemento, evitando assim o enviesamento provocado pela cegueira seletiva ou não intencional. O conhecimento anterior é continuamente reavaliado pela nova informação, como uma corrente de bicicleta em movimento constante entre os dois eixos. Como António Damásio demonstrou (2018, p. 140), a maior parte do raciocínio exige uma interação entre aquilo que as imagens presentes mostram como sendo o 'agora' e aquilo que as imagens recordadas mostram como sendo o 'antes'.
Abel Salazar recomenda que cada estudante faça um primeiro desenho a seguir ao exame sumário da preparação, e outro após um estudo mais atento. A comparação dos dois desenhos permite pôr em evidência a descoberta dos pormenores, mas também “o mecanismo mental da própria observação” (Salazar, 1943, p. 57). Esta é a verdadeira finalidade dos desenhos: observar a própria observação, como forma de aceder e avaliar o que o estudante apreendeu e identificar equívocos que se tenham criado (Quillin & Thomas, 2015, p.3).
A literatura recente sobre o desenho como meio de comunicação tácita entre professores e estudantes na aprendizagem da microscopia, tem destacado os seus benefícios na superação da resistência em absorver informações novas rapidamente. O hábito de desenhar para colegas e estudantes é uma consequência natural e necessária da observação conjunta ao microscópio para aprender a selecionar e organizar a informação:
os estudantes de medicina não tinham ainda a linguagem para perceber sobre o que é que eu estava a falar se estivesse a descrever a estrutura vista ao microscópio'. Isto [o desenho] era apresentado como uma forma de explicação em ação: 'nós desenhamos', o consultor explicou, 'para falar um com o outro'. O histopatologista explicou que sabia quando os estudantes começavam a compreender as estruturas que observavam ao microscópio porque ‘tiravam-me a caneta e começavam a desenhar sobre o que eu tinha feito (...) estávamos então todos no mesmo lugar a falar sobre a mesma coisa' (Lyon & Turland, 2020, p.7).
O que distingue a abordagem de Abel Salazar é o facto de o desenho histológico ser um esquema elaborado da experiência da observação, e não apenas um diagrama conceptual do espécime, o que permite acomodar informações novas. O desenho não nos dá a imagem das coisas, como lembrava John Berger, mas as coisas a serem observadas. Desenhar é analisar a estrutura das aparências (Berger, 2005, p. 71).
Consciente do papel do desenho como um circuito partilhado entre raciocínio e perceção, o método de Abel Salazar indica ainda os seus efeitos na memória:
Diremos ainda que é um excelente exercício prático a execução do croquis de memória; isto é, fixar e observar detidamente uma preparação, e tentar reproduzi-la sem tornar a olhar para o microscópio. (...) Esta ginástica é ainda excelente para nos habituarmos a reconstruir mentalmente um órgão que se apresenta em vários cortes seriados (p. 58).
É neste ponto que o método de desenho histológico sugere a interação entre os modelos visuais externos que o desenho cria, e os modelos internos ou mentais que se formam na mente do estudante. Os estudos sobre o papel do desenho nas áreas STEM colocam em evidência esta interação, pela forma como o cérebro naturalmente recorre à informação espacial para codificar outras informações, como verbais ou numéricas, aumentando assim a capacidade da memória e da aprendizagem (Quillin & Thomas, 2015, p.3). O desenho de um modelo físico ou visual, como uma lâmina microscópica, pode ocorrer como resultado de um modelo mental já constituído ou como parte das tarefas cognitivas de selecionar, organizar e integrar a informação, que estruturam o processo de aprendizagem e a criação de novos modelos mentais (Van Meter & Garner, 2005).
A LÓGICA DA COMPARAÇÃO
Quando um estudante traduz um modelo visual (a amostra preparada) noutro modelo visual (o desenho), o processo de tradução pode ser “vertical” ou “horizontal”. Um processo vertical ocorre entre modelos visuais com escalas e ampliações diferentes. A tradução “horizontal” verifica-se quando ambos os modelos partilham a mesma escala. Em estudantes STEM, este processo horizontal facilita a aquisição de competências de observação, ativa a memória e a compreensão das relações espaciais entre os elementos observados (Quillin & Thomas, 2015, p.6), mas também nos leva a descobrir factos e relações que, de outra forma, passariam despercebidos (Salazar, 1943, p.4). Esta possibilidade da descoberta é assinalada em vários outros estudos sobre o impacto do desenho na observação microscópica:
Num dos exemplos, informações anatómicas adicionais anteriormente ignoradas foram notadas. Apesar de estudar as moscas-de-fruta em experiências ao microscópio durante três anos, a investigadora não tinha reparado nos pequenos pelos adicionais no abdómen da fêmea até os ter desenhado. Outro investigador nunca tinha prestado atenção ao “inchaço” numa planta que investigava há vários anos. A atividade do desenho levou a que reconsiderassem material familiar e o revessem, permitindo que novas informações fossem reveladas. O entendimento do potencial deste método levantou preocupações sobre que outras informações se teriam perdido. (...) Mudaram a sua rotina diária de trabalho para ter o tempo extra para incluir o desenho como parte do seu protocolo de laboratório (Lyons, 2012, pp.6-7).
Estas descobertas, quando ocorrem, resultam de um processo de comparação que só é possível quando os estudantes relacionam dois modelos visuais – a amostra preparada e o desenho – ao invés de se concentrarem num só modelo ou na tradução entre o modelo verbal e o visual (texto-imagem). A comparação é uma técnica intelectual usada em várias disciplinas científicas e na história de arte (Dünkel, 2015, p.14) que nos orienta de forma a distinguir e categorizar o que vemos e experienciamos. No confronto visual entre dois modelos distintos, ficamos mais aptos a reconhecer relações quando desenhamos e, simultaneamente, a destacar as diferenças de forma mais nítida. Isto ocorre porque a observação ativa que o desenho provoca é também uma observação reflexiva. Cada elemento observado estimula uma nova compreensão que se junta ao banco de conhecimento formal na mente do observador. É por isso que o desenho, ao selecionar e representar em simultâneo os traços característicos do espécime, representa atos de observação múltiplos e contínuos que coordenam o movimento da mão e da visão. O desenho dá-nos uma imagem do espécime que seria impossível sem o tempo investido, o que nos permite observar e comparar detalhes em simultâneo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS – PARA ALÉM DA DOCUMENTAÇÃO CIENTÍFICA.
Embora reconhecendo o seu estatuto de documento científico, o método de desenho histológico de Abel Salazar reflete sobretudo uma posição epistémica: trabalha os processos de seleção, organização e integração que ocorrem na observação científica quando ela é mediada pelo desenho. A literatura recente sobre o impacto generativo do desenho na microscopia tem confirmado a importância da criação de modelos visuais externos para organizar a informação selecionada em modelos mentais, para desenvolver a agilidade cognitiva durante a aprendizagem e para demonstrar o conhecimento adquirido, onde se incluem os equívocos e dúvidas que, com frequência, os estudantes não expõem diretamente.
O método de desenho histológico de Abel Salazar distingue-se pelo ênfase dado à experiência indutiva da observação ao microscópio, mais do que ao conhecimento puramente dedutivo da amostra. Deste modo, potencia a construção de modelos mentais sobre espécimes ainda não estudadas. A construção do conhecimento parece acompanhar o próprio processo de observação, ao refletir a técnica e os protocolos de observação ao microscópio, nos seus movimentos de polarização e despolarização.
Contudo, se os estudos sobre o tema têm demonstrado as vantagens de integrar atividades de desenho no estudo microscopia e discutido as causas para a sua resistência na aprendizagem STEM, a construção e demonstração de métodos de desenho adaptados a diferentes cenários da observação microscópica é ainda residual. Em particular, quando dirigida a contextos em que se verifica a ausência de um treino formal de desenho, ou resistências provocadas pela falta de confiança e motivação.