Para a ciência alguns registos encontrados no interior das cavernas podem ser entendidos como um conjunto de diagramas que indicavam ataques padronizados e, cujo objetivo seria elucidar ou até mesmo instruir as gerações de caçadores vindouras. Um dos exemplos mais surpreendentes deste período são as representações criadas pelos aborígenes no norte da Austrália. Denominadas de x-ray drawings, devido às semelhanças partilhadas com a imagem de um raio-x, estas figurações procuravam de um modo muito elementar perscrutar o interior do corpo humano. Embora o propósito destas figuras não se centrasse no estudo da fisiologia animal, não deixa de ser curioso observar a forma como o desenho se vai concretizando no encadeamento das linhas, que por vezes sugerem a formulação da estrutura óssea. (Ford, 1992, p. 17)
Ao observar a figura é possível identificar a espinal medula e as articulações presentes nas patas de um canguro, assim como uma tentativa de inscrever e posicionar alguns órgãos na parte interior do dorso. A partir deste desenho poderá questionar-se quais os conhecimentos reunidos sobre a dissecação e a análise de animais mortos, salientando as vantagens que a observação da anatomia teria no domínio das espécies capturadas e consequentemente no aperfeiçoamento de técnicas e utensílios utilizados na caça.
A figura do médico a examinar o abdómen de uma criança constitui-se como um dos primeiros registos que documentam a ação do terapeuta na observação do paciente.
Davam-se os primeiros passos na descoberta da Anatomia, inicialmente difundida pelos filósofos gregos. A escola hipocrática contribuiu para fundar a Medicina como uma ciência ligada à saúde, passando de uma crença envolta em misticismos para se transformar numa prática regulada. Abandonavam-se os curandeiros para se aplicar um método, hoje habitual, de análise dos pacientes através do qual se observavam os sintomas que estariam na origem das mais diversas enfermidades. Esta análise permitia detetar as doenças mesmo quando não se conheciam as causas e o respetivo modo de tratamento. Perante este cenário os médicos procuravam controlar a situação e ajudavam os seus pacientes a morrer confortavelmente.
William Harvey (1578 - 1657), que se propôs a rever alguns aspectos do galenismo que permaneceram inalterados. Atentando à fisiologia galénica, esta compreendia a existência de dois sistemas circulatórios: um vincu- lado ao fígado que produzia sangue – fornecendo alimento através das veias, e outro, no qual o coração provocava uma combustão entre o ar que vinha dos pulmões e o sangue – que depois circulava nas artérias. Perante esta duplicidade, Harvey baseia-se na teoria aristotélica e prevê um sistema único através do qual o coração funciona como uma bomba que faz circular o sangue por todo o corpo. Para demonstrar a sua teoria o médico recorreu a uma experiência simples documentada através do desenho. Analisando a figura de cima para baixo, encontra-se a ilustração de um braço com um garrote, cuja mão permanece agarrada a um objecto tubular. A repetição deste elemento, numerado de um a quatro, enfatiza o número de figuras necessárias à explicação da circulação do sangue nas veias. Em auxílio deste exercício, as mãos vão pressionando os vasos sanguíneos com o objectivo de precisar a deslocação do fluído da esquerda para a direita.
O estudo da anatomia é amplamente explorado no século XVIII através de um conjunto de obras ilustradas com representações excepcionais, entre as quais se destaca a Tabulae sceleti et musculorum corporis humanio do professor de anatomia e cirurgia Bernhard Siegfried Weiss, também reconhecido por Albinus (1697- 1770). Nesta publicação os desenhos gravados em placas de cobre representam com grande detalhe a miologia e a osteologia do corpo humano, destacando o grau de verossimilhança entre a natureza das estruturas anatómicas e a sua respetiva representação. Este exemplar, amplamente copiado e difundido, contribuiu para aproximar e legitimar a importância do desenho no contexto da representação científica da anatomia.
O século XVIII inaugura o intercâmbio fortuito entre o desenho e a ciência, promovido pela aparição da ilustração médica. Como resultado desta união o desenho alterava os seus contornos no alcance de uma linguagem cada vez mais precisa e aproximada à realidade que se procurava representar. Para acompanhar o rigor científico não se contemplavam desvios na representação e imposições de cunho artístico. Neste compromisso, o desenho acompanha a fundação de várias disciplinas médicas, entre as quais se destacam a obstetrícia. Na vanguarda desta especialidade, William Hunter (1718 - 1783), anatomista e obstetra produz um trabalho de extrema relevância para o avanço da obstetrícia. A Anatomia uteri umani gravidi, apresenta- se como uma obra notável no estudo da gestação, cujas ilustrações realizadas por Jan van Rymsdyk (1730 - 1790) revelam de forma crua o realismo incisivo da dissecação. Por entre as trinta e quatro gravuras presentes na obra é possível acompanhar as diferentes fases da dissecação do útero gravídico. Rymsdyk vai revelando o seu conteúdo e a configuração dos seus componentes até terminar na presença efectiva do gestante. O realismo evidenciado nestas imagens marca o momento em que melhor se soube conjugar as valências partilhadas entre arte e ciência.
Bartholomeus Eustachius (1520-1574) também contribuiu para o amadurecimento da Anatomia debruçando-se na descrição dos canais auditivos, do cérebro e respetivos nervos cranianos, entre outras descobertas sobre a anatomia abdominal. Escreveu a obra Opuscula Anatomica onde expôs os seus estudos acompanhados de 8 gravuras que ilustravam algumas ideias sobre o funcionamento dos rins e do sistema circulatório. Após a morte do autor, Giovanni Maria Lancisi (1654–1720) descobriu trinta e oito placas de cobre gravadas por Giulio de' Musi (1535–1553), cujos desenhos estavam destinados a ilustrar outra obra de Eustachius. Como o texto nunca foi encontrado, Lancisi publicou as gravuras sob o título Tabulae anatomicae Bartholomaei Eustachii. Uma característica curiosa nestes desenhos é o uso de réguas numeradas e impressas nas bordas para localizar as estruturas anatómicas sem recorrer ao uso de letras ou números nas imagens.
Jean-Galbert Salvage (1770 – 1813) foi um médico e professor no Hopital Militaire em Paris que desenvolveu competências artísticas ao longo da seu percurso profissional. Tinha uma grande admiração pela escultura clássica e acreditava que a perícia técnica aplicada à estatuária não se baseava exclusivamente na observação superficial do corpo humano, sendo complementada com um conhecimento profundo sobre a sua estrutura interna. Para explorar a sua teoria, decidiu retratar as estruturas anatómicas subjacente à figura de Apollo e do gladiador Borghese com o intuito de revelar as coincidências presentes entre a miologia e osteologia e a representação superficial destas estruturas. Os desenhos apresentados na obra Anatomie du gladiateur combattant, applicable aux beaux arts ou Traite des os, des muscles, du mécanism des mouvemens, des proportions et des caracteres du corps humain apresentam essas figurações retratando com grande detalhe as camadas musculares de um corpo em movimento, observado a partir de diferentes perspetivas. (Lifchez, 2009)
No século XIX o estudo da anatomia humana atinge o seu apogeu quando Jean Baptiste Marc Bourgery (1797-1849) e Nicolas Henri Jacob (1782-1871), publicam uma obra extraordinária de grande formato, intitulada de Traité complet de l’anatomie de l’homme na qual se pode observar a representação do corpo humano de forma detalhada. A presença da cor permite diferenciar as estruturas representadas a partir da observação do natural com o objetivo de retratar a dissecação do corpo humano com um grau de verossimelhança notável.
A evolução da cirurgia e a análise dos procedimentos cirurgicos, contribuía para a evolução da anatomia e entendimento do funcionamento das suas estruturas fisiológicas. As representações gráficas que documentam as descobertas levadas cabo no campo da cirurgia, constituem-se como uma narrativa visual na qual se descreve pormenorizadamente as técnicas cirurgicas com o objectivo de comunicar de um modo eficaz o conhecimento que se encerra nas imagens. A numeração das figuras acomodadas de forma sequêncial no plano da imagem, constituem-se como uma espécie de instrução do procedimento em questão.
Entre os séculos XVI e XIX, a anatomia já tinha identificado e descrito grande parte da estrutura corporal humana e por isso abria a possibilidade de se explorarem outras subdivisões, entre as quais se destaca a anatomia patológica que se debruçava no estudo do cadáver sob o ponto de vista clínico. A necessidade de compreender as alterações provocadas pela doença, aliada à descoberta do microscópio, permitia aprofundar o conhecimento da biologia aplicado à medicina. Neste contexto, Rudolf Carl Virchow (1821-1902) enceta um conjunto de descobertas no campo da patologia celular na tentativa de descortinar qual a origem das alterações provocadas por algumas de algumas doenças caractisticas da altura como o raquitismo. Uma das obras que publicou Die Cellularpathologie defendia a tese de que as doenças são baseadas em distúrbios encontrados nas células do corpo. Para ilustrar sua a teoria, apresentam-se um conjunto de desenhos onde se identificam as alterações celulares que caracterizam a presença da doença.
Henry Gray (1827-1861) promove a ligação entre a prática do desenho e a aprendizagem da anatomia até à actualidade. A sua obra Anatomy: descriptive and surgical (a primeira edução data de 1858) ilustrada por Henry Vandyke Cartes (1831-1897) contém cerca de trezentas gravuras que ilustram as estruturas do corpo humano com rigor e precisão. O seu caráter didáctico transformou-a num ponto de referência para os estudantes de medicina que continuam a consultá-la como documento de auxilio à compreensão das formas anatómicas. A sua constante reedição sublinha e perpetua a importância do desenho na construção do conhecimento e do discurso científico.
A obra de Léo Testut (1849-1915) Traité d' anatomie humaine, dividida em várias partes: 1. Ostéologie. Arthrologie. Myologiet; 2. Angéilogie. Système nerveux centralt; 3. Système nerveux périphérique. Organes des senst; 4. Appareil de la digestion. Appareil de la respiration et de la phonation. Appareil uro-génital. Embryologie, terá servido de referência a várias gerações de médicos. A estrutura a partir da qual se organizam os conteúdos assemelha-se aquela que se encontra nos manuais de anatomia que são utilizados actualmente. É curioso observar que os desenhos apresentados nesta obra mantém uma relação de proximidade em termos de linguagem gráfica com as ilustrações de Henry Vandike Carter. Em ambos os exemplos, a representação da tridimensionalidade realizada por intermédio de tramas modeladoras do volume, evidenciam a eficácia desta técnica na representação do corpo humano.
Max Brödel (1870 – 1941) evidencia-se como uma figura proeminente no desenvolvimento da ilustração médica, principalmente no campo da cirurgia. Procurou conjugar a sua habilidade artística com a aquisição de conhecimentos na área da Medicina através do contacto com alguns médicos no hospital Johns Hopkins, local onde trabalhou enquanto ilustrador e no qual acabou por fundar a primeira escola de ilustração médica. Os seus desenhos documentam alguns procedimentos na área da neurocirurgia (figura 3) e são extraordinários porque introduzem a perspetiva aérea como uma estratégia de visualização das estruturas anatómicas do ponto de vista do cirurgião. Desenhados com grande rigor, estas imagens incorporam magistralmente o realismo dos tecidos com a anatomia transversal, aliando o conhecimento transposto na imagem e a precisão topográfica. (Patel et al., 2011)
A divulgação dos desenhos realizados por Brödel revelou a importância da representação no contexto da formação médica, considerando a sua utilidade no entendimento e consolidação de conhecimentos. Este reconhecimento fomentou a emergência de outros ilustradores como Frank Netter (1906-1991), cujas ilustrações continuam a persistir nas edições atuais dos atlas de anatomia utilizados pelos estudantes de medicina. O estilo dos seus desenhos é inconfundível na medida em que reune o realismo e a precisão científica na construção da imagem. A utilização da cor realça as estruturas anatómicas representadas no desenho, facilitando deste modo a leitura e interpretação da imagem. Talvez por este motivo é que actualmente os estudantes de medicina analisam atentamente os seus desenhos quando estudam para os exames de anatomia. Alguns deles chegam mesmo a copiar estas representações como forma de memorizar o posicionamento de determinadas estruturas.
Atualmente, a representação gráfica do corpo humano continuam a ser um material de apoio importante para o estudo da anatomia. Os softwares de visualização 3D (figura 4) podem substituir ou complementar as versões em papel dos Atlas, possibilitando o início de uma viagem interativa pelo interior do corpo humano. Através da manipulação do cursor é possível girar o desenho de forma livre e observar de diversos ângulos os sistemas funcionais, destacando os seus respetivos componentes e a informação teórica. A navegação no software é bastante intuitiva e permite executar um conjunto de ações como retirar camadas, identificar estruturas e eliminar componentes, promovendo uma experiência de dissecação virtual do corpo.
Ford, Brian J.– Images of Science: a history os scientific illustration. Londres: The British Library, 1992
Hebron, Caroline Susan – Aspects of health, injury and disease amongst the non-elite workforces of Dynastic Egypt [Em linha] [United States: ProQuest LLC] 2013. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW:https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1445548/1/U592872.pdf
Khalili, M.; Shoja, M. – Illustration of the heart and blood vessels in medieval times [Em linha] [s.l.: s.n.] 1997. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20060606, p. 1
Silva, João Martins – Leonardo Da Vinci e as Primeiras Observações Hemodinâmicas. [Em linha] [Lisboa: Sociedade Portuguesa de Cardiologia] 2008. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/989
Baigrie, Brain S. – Picturing Knowledge: Historical and Philosophical Problems Concerning the use of Art in Science. Toronto: University of Toronto Press, 1996
Costa, Henrique Antunes. – Projeto original de modelo tridimensional para anatomia artística: constituição osteológica e miológica do corpo humano. Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2014. Tese de Doutoramento
Lifchez, Raymond – Jean-Galbert Salvage and His Anatomie du gladiateur combattant: Art and Patronage in Post-Revolutionary France. Metropolitan Museum Journal, 44, 163–184. 2009. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: http://www.jstor.org/stable/25699111
Patel, S. K., Couldwell, W. T., & Liu, J. K. – Max Brödel: his art, legacy, and contributions to neurosurgery through medical illustration. J Neurosurg, 115(1), 182-190. 2011. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://doi.org/10.3171/2011.1.Jns101094